domingo, março 11, 2007

Dúvida por Srta. Jones

"Mas doutor, o senhor acha que o meu problema tem solução?"

Já era a terceira vez que ele ia ao médico com a mesma queixa. O clínico já não sabia mais o que responder.

"Eu nem posso dizer que há um problema. Você já fez todos os exames. Não é um tumor, nem é um desvio na sua coluna. Você já disse que não sofre de sinusite nem labirintite. Eu não sei o que pode ser."

"Tem que ser alguma coisa. Será que é algo que eu comi?"

"Uma dor de cabeça não duraria dois meses por causa de algo que você comeu."

"Tudo bem, esta possibilidade está descartada. E se eu bati com a cabeça em algum lugar e não me lembro?"

"De novo, a dor não duraria dois meses se esse fosse o caso. Eu lamento, mas sua dor não tem nenhuma causa física provável."

"Não é possível. Essa dor tem que ter um motivo. Tem que ter."

"Você está passando por alguma situação estressante repetitiva? Alguma coisa no seu trabalho, talvez?"

"No trabalho... acho que não. Mas eu tenho que escutar a vizinha cantando a música da novela a plenos pulmões todos os dias. Isso é bem estressante."

"Algo mais estressante do que isso."

"Bom. Ir todo dia para o trabalho me estressa. Eu não gosto do contato com outras pessoas. E ler os jornais também me irrita profundamente. As notícias são sempre iguais."

"Alguma ameaça à sua estabilidade profissional, algum problema familiar?"

"A minha mãe me liga todos os dias para dizer que eu estou ficando velho e preciso casar. A impressora do escritório sempre engole os meus relatórios. Uma das secretárias passa o dia todo lixando as unhas e falando sobre o namorado, e qualquer dia desses eu vou colar os dedos dela com superbonder."

"Sim, mas... há alguma coisa realmente grave acontecendo?"

"Grave? Bem... eu não sei. Grave. Grave, como algo muito sério, muito urgente?"

"Sim."

"Bem... eu preciso entregar o relatório anual de planejamento até a semana que vem, e não estou nem na metade ainda. Isso é bem grave."

"É, pode ser isso. É uma situação de pressão, de estresse. Isso pode provocar efeitos físicos severos, como uma dor de cabeça persistente, por exemplo."

"É, quem sabe não é isso mesmo. Eu pensei até que pudesse ser outra coisa, mas acho que deve ser esse problema do relatório."

"O que você pensou que pudesse ser?"

"É que..."

"Fale."

"É um pouco difícil falar sobre isso. É complicado explicar, sabe?"

"Mas tente."

"Bom... é que, há coisa de uns dois, três meses, eu venho tendo aulas de canto."

"Aulas de canto? Mas isso é muito bom!"

"É, é mesmo. Eu sempre quis fazer aulas mas não tinha tempo e às vezes era só vergonha mesmo. Pois então, há três meses eu faço aulas de canto duas vezes por semana, sempre depois do trabalho. Eu saio de lá restaurado, feliz, realizado. É como um sonho se tornando realidade."

"Sim, mas o que há de estressante nisso?"

"Pois então, doutor. A minha professora de canto me disse que eu sou muito bom, que eu sou um talento nato que precisava ser descoberto..."

".. Isso é maravilhoso!"

"É, é sim. Mas ela quer que eu cante. Em público."

"Mas isso é um grande voto de confiança que ela está depositando em você. E você quer cantar em público?"

"Esse é o problema. Eu não quero. Na verdade, eu não posso."

"Mas por que não?"

"Porque... porque eu vou ter que me expor. Eu não quero me expor."

"Mas se você tem talento, deveria controlar o medo. Não são todas as pessoas que são abençoadas com o dom de cantar. Isso é muito especial."

"É, é especial sim. Mas também é embaraçoso. Eu não quero que todo mundo fique sabendo que eu canto bem."

"Mas isso é espantoso. Normalmente uma pessoa mataria por uma oportunidade dessas, e você a está recusando?"

"Veja bem, eu não estou esnobando o destino. Eu realmente agradeço à minha professora de canto pela chance, mas é um passo muito grande para mim, e eu não quero dá-lo."

"Eu realmente não consigo entender."

"Eu não nasci para isso. Eu gosto de ser assim. Ninguém me vê, eu não vejo ninguém. A vida passa, o mundo caminha e eu vivo minha vida sem ser importunado. É bom assim."

"É confortável."

"É, exatamente! É extremamente confortável."

"O conforto pode levar à mediocridade."

"Mas eu não sou medíocre."

"Você tem um talento e prefere manter-se fechado na sua concha, confinado no seu próprio mundo. Essa atitude é a mãe de todas as mediocridades."

"Ah doutor. Não diga uma coisa dessas. Eu estou tão bem vivendo assim."

"Está bem mas poderia ficar melhor. E certamente sua dor de cabeça passaria."

"Será? Eu faria qualquer coisa para me livrar da dor de cabeça."

"Tenho certeza de que, se você aceitar o convite de sua professora, a dor passará."

"Humm... eu não sei. Eu preciso pensar um pouco mais."

"Cuidado para não acabar pensando demais e perdendo a oportunidade. O mundo não espera por ninguém."

"Mas o que eu faço com a minha... com esse meu bloqueio? O que eu faço com isso?"

"Você pode fazer terapia."

"Mas eu precisaria falar sobre a minha vida. Eu não falo sobre a minha vida com ninguém."

"Então eu não sei como posso te ajudar."

"Mas eu preciso cantar! Eu não agüento mais essa dor de cabeça!"

"A terapia pode te ajudar, mas você precisa fazer um esforço. E mesmo assim não há cem por cento de certeza de que você vá se curar. Você pode aprender a administrar o problema, talvez."

"Mas eu preciso me curar."

"Eu não sei se isso é possível."

"Mas doutor, então o senhor acha que o meu problema não tem solução?"

"A solução é aprender a contornar o problema, e não necessariamente resolvê-lo."

"Sei. Quer dizer, eu acho que não entendi bem, mas..."

"É como uma pedra muito grande que está no meio do caminho. Ela é pesada demais para que você a tire do lugar. Então, a coisa inteligente e prudente a se fazer é desviar dela. Assim, você continua sua caminhada sem precisar fazer um esforço que, no fim, não levaria à nada."

"Ah, sei. Então eu preciso aprender a me desviar do meu bloqueio, é isso?"

"Sim, exatemente."

"E como eu aprendo isso?"

"Aprendendo a viver."

"Ah... e como eu aprendo a viver?"

"Cantar seria um bom começo."

"É, parece uma idéia razoável. Bom doutor, obrigado pelo conselho. Eu... eu só não sei se vou realmente conseguir seguí-lo."

"É, mas pelo menos eu fiz a minha parte. É pra isso que eu existo."

"É, é verdade. Bom, até a próxima!"

"Até, e não esqueça de me mandar um convite para assistir à sua estréia."

"O senhor vai querer me assistir?"

"Sim, por que não?"

"Doutor, acho que a minha dor de cabeça está piorando..."

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