segunda-feira, março 15, 2010

Identidade por Srta. Jones

Quem sou eu?
Eu sou a palhaça que faltava no seu circo
A pedra que faltava em seu sapato
O pensamento que você não concluiu
A vida que você não viveu
A mulher que você teve mas não quis
O amor que você não desejou

Eu sou o círculo que não cabe no quadrado
O raciocínio que não segue a lógica
O tema que não resume o discurso
Eu sou tudo e não sou nada
Eu sou o ego e o desapego
Eu sou você quando se olha no espelho

Eu sou a mãe, a filha e a irmã
Amiga e inimiga
Querida e odiada
Sentida ou renegada
Eu sou a saudade que você não sentiu

Eu não sou nada mais do que você imaginou.

domingo, novembro 02, 2008

Canastrice por Srta. Jones

Pessoas (supostamente) satisfeitas não têm inspiração. Nem pessoas ocupadas.

quinta-feira, janeiro 03, 2008

Vidro Quebrado por Srta. Jones

Sempre tive a mania de buscar as histórias das músicas que gosto. Quanto mais misteriosa e intrigante a letra, maior a minha necessidade de descobrir o que existe por trás dela. Foi assim que, ouvindo "Christine", da banda Siouxsie and the Banshees, eu me interessei em pesquisar uma doença chamada Transtorno Dissociativo de Identidade (a popular síndrome de personalidade múltipla). A música trata do caso real de uma mulher americana chamada Christine Costner-Sizemore que, em um momento de sua vida, chegou a ter 22 personalidades diferentes, todas em resposta a diversos traumas sofridos pela paciente. Hoje a senhora de 80 anos está curada, mas sua condição está eternizada na música de Siouxsie Sioux, em um filme (Three Faces of Eve) e em dois livros, e certamente ainda gera a curiosidade de muitos outros caçadores de histórias obscuras. Mas este post não é para falar da sra. Costner-Sizemore ou de Siouxsie and the Banshees. O que realmente me motiva é a tal da personalidade múltipla.

O TDI é uma condição que confunde psiquiatras porque muitos de seus sintomas são comuns a outras doenças - e algumas escolas defendem que, na verdade, o transtorno é um sub-sintoma de outros distúrbios. Há ainda os profissionais que não acreditam na existência do TDI, pois seu diagnóstico é subjetivo e há pouca evidência empírica de sua ocorrência. Mas o fato é que a antiga síndrome de personalidade múltipla é uma doença que, real ou inventada, encanta e assusta a ponto de gerar controvérsia, discussão, curiosidade e arte. Imaginar que uma única pessoa possa se dividir em duas ou mais e assumir diferentes vozes, trejeitos e maneiras de pensar é algo que instiga o senso lúdico de cada um. Seria essa doença um teatro pessoal, em que o "ator" interpreta diferentes personagens de acordo com os estímulos externos do ambiente e das pessoas que o cercam? Seria um possessão espiritual? Talvez apenas uma maneira mais livre e radical de se desvencilhar de pessoas e situações incômodas? Uma bela desculpa para se cometer um crime ou "esquecer" de pagar uma dívida? Eu particularmente fico com a tese de que esta é uma doença real e que quem finge tê-la, na verdade, tem outros problemas psiquiátricos (ou é apenas cara de pau).

Mas o meu objetivo ainda não é falar só sobre Transtorno Dissociativo de Identidade. O que realmente tem me intrigado é perceber como pessoas comuns, sem traço aparente de doenças psiquiátricas graves, podem mudar de comportamento de forma repentina, assustadora ou somente frustrante. Sabe aquele amigo que passa um mês te ligando quase todos os dias e de repente some? Ou aquele cara que parece estar afim de você mas que, de uma hora para outra, se comporta como se vocês nunca tivessem se conhecido. Quantas vezes você não se pegou perguntando "esse cara é maluco?"? Você cumprimenta uma vizinha todos os dias e às vezes ela responde - em outras é como se ela não tivesse a menor idéia de quem você pode ser.

O problema da mudança súbita de comportamento é impedir o estabelecimento de relações de confiança com algumas pessoas. E eu não me refiro especificamente à segurança de se poder contar segredos para alguém, mas simplesmente ao fato de ser querer ter algumas certezas sobre as pessoas com que convivemos. Poder esperar certas atitudes ou dar como garantidas algumas benesses que só a amizade traz. Ter certeza de que aquele recado na secretária eletrônica vai ser respondido, ou que o convite para um almoço vai ser bem recebido. Uma amizade só faz bem se você não precisa ficar roendo as unhas toda vez que manda um email. A longo prazo, amigos que não agem como manda o figurino ou que repetem comportamentos insólitos não valem o investimento. A menos que eles tenham alguma coisa em comum com Christine - aí é melhor você se informar sobre o Transtorno Dissociativo de Identidade e não esperar sentado por um telefonema.

segunda-feira, dezembro 31, 2007

Ano Velho por Srta. Jones

Todo ano ela fazia tudo igual. Retirava o excesso de cinismo, diluía em água o sarcasmo e dava férias para o pessimismo. Todo ano ela acreditava que seria, enfim, diferente. Que a mesma esperança que natural e sorrateiramente tomava conta de si teria contagiado seus pares e tornado seus corações e mentes menos endurecidos e egoístas. Todos os anos ela se frustrava.

Não que todos fossem capazes de destruir seu espírito. Mas bastava o mau comportamento de um para tirar-lhe todo o prazer de esperar sempre pelo melhor. E o silêncio dos outros era anuência de que os maus precisavam para arruinar o seu futuro. Mesmo assim, todos os anos, como se esquecesse o fracasso do ano anterior, ela voltava a acreditar. Para ela não havia trauma - ou mesmo má impressão - e ela sempre chegava àquele momento com fé renovada, uma mente apagada de más recordações. E todos os anos ela terminava o dia com o coração dolorido. A garganta fechava e ela queria apenas fugir. Chorar sempre parecia fora de questão, mas com o tempo aquele passou a ser o único dia em que ela se entregava à fraqueza. Era o único fato de sua vida que ainda a tornava vulnerável. E era o que mais se repetia. Todos os anos, todos os dias.

Ignorâncias por Srta. Jones

Quando eu deveria andar na rua despreocupada, segura (de que um meteoro não cairá sobre mim ou que o alvo de uma metralhadora não encontrará o caminho de minha cabeça) e confiante (no fino trato de meus conterrâneos), sou bombardeada com a doença social que tornou todos os moradores desta cidade pacientes eternos e sem cura. Quando, porém, tomo parte em situações de socialização espontânea e descompromissada e mostro minha persona mais amigável, sou presenteada com o desprezo.

Quero atacar as duas faces da ignorância com dois sonoros, doloridos e pulsantes tapas.

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Descrença por Srta. Jones

Tenho pensado muito sobre criatividade. Tanto que esbocei uma poesia sobre o assunto. O poema começava falando sobre bloqueio criativo e seguia até chegar à criação plena. Porém, nos últimos versos, travei. Por caminhos tortos, fui confrontada com as opiniões de que bloqueio criativo é um assunto sobre o qual não se deveria escrever, pois seria um "clichê", e que existem coisas que não valem a pena ser publicadas. O meu pensamento não poderia ser mais diferente.

O maior clichê que existe é o amor. Escreve-se sobre ele o tempo todo (e fala-se e canta-se...). Todo ser humano que já juntou pena e papel versou sobre o tal sentimento, pelo menos alguma vez na vida. Pode ser um poeminha infantil, uma carta pretensiosa de algum adolescente, um livro, um soneto. Obras publicadas ou aquelas linhas que vivem eternamente dentro de uma gaveta ou caderno. E quem seria louco de dizer que não se deve escrever sobre o amor? Se ele acontece todos os dias e em cada quarto vazio ele pode morrer, sempre haverá algo de novo a ser dito. A sua repetição não esgota seu significado - tanto sentimental quanto artístico. Como o bloqueio criativo é o pesadelo de todos que têm necessidade de escrever, por gosto ou profissão, ele é um assunto que nunca se exaure. Não importa se é um clichê.

Em relação à qualidade do que se publica, o problema é ainda mais grave. Questionar a validade de uma obra (ou mesmo de um simples texto de internet) e tentar determinar seu mérito é, em última instância, tentar colocar um filtro no processo criativo. É uma forma artificial de se estabelecer um bloqueio - o grande inimigo de qualquer forma de arte. O papel de definir o que "serve" e o que não "serve" cabe a quem escreve - e esse papel é exercido através do bom senso. A quem lê, resta julgar por termos extremamente pessoais. Imagine se cada um de nós pudesse decidir que obras e quais autores merecem ser publicados - e pudéssemos eliminar aquilo que já estivesse publicado e que não se enquadrasse no nosso conceito de "bom". Mataríamos a herança cultural uns dos outros - porque, ó obviedade, o que é bom para mim não é necessariamente bom para outras pessoas. Sumiriam com os livros de Camus e Nabokov e eu não teria outra opção a não ser queimar as obras de Henry Miller e Saramago. Para os sedentos de sangue e propensos a uma caça às bruxas não há cenário mais atraente. A mim, particularmente, nada disso interessa. Sou apenas mais uma "blogueira" que, com freqüência errática, gosta de colocar um pedacinho do próprio pensamento para que estranhos e amigos possam ler. Sou apenas mais um ser humano que precisa escrever.

segunda-feira, novembro 26, 2007

Agonias Modernas por srta. Jones

Estou enfim colocando para frente um projeto sonhado e meticulosamente planejado por dois anos e, por isso, tenho passado os últimos dias fazendo exaustivas pesquisas na internet e disparando emails diariamente. Não sou uma pessoa que manda muitos emails, até porque a maioria das pessoas com quem me relaciono de alguma forma está ao alcance do telefone (ou das mãos, dependendo de quem for). Por isso mesmo, quase nunca tenho que me preocupar com a capacidade alheia de responder às missivas eletrônicas em tempo hábil ou ao menos num período que seja minimamente tranqüilizante. Esta preocupação agora é minha companheira diária. Companheira desagradável, diga-se.

A incapacidade humana de corresponder aos anseios mais básicos do outro e a habilidade de deixar para amanhã o que deveria ser feito hoje são tão irritantes quanto crianças que andam com aqueles tênis de rodinhas pelos shoppings. Despertam em mim, em igual medida, a vontade semi-controlável de estapear os procrastinadores e obrigá-los a ir ao encontro daquilo que lhes é pedido (ou, no caso das crianças, deixar o pé na frente quando elas passarem - imaginem que belo seria o tombo).

De 15 emails enviados em sete dias com o mesmo objetivo para cinco remetentes, só obtive resposta para três, sendo que apenas um realmente satisfez (em parte) as minhas necessidades. E cá estou eu, dependendo da resposta de todas as mensagens para levar meu plano adiante. Nada pode ser realmente feito sem este feedback e o tempo está conspirando contra mim. E isso não importa a ninguém, porque ninguém além de mim está realmente preocupado com isso.

As conexões ultra-rápidas e os celulares transformaram a noção moderna de tempo e espera. É intolerável para alguém deste século ter de esperar algumas horas por um telefonema, ou um dia pela resposta de um email. E não muda nada saber que há tão pouco tempo se esperava dias e dias, semanas, por cartas, encomendas, encontros. Eu continuo querendo que os meus 15 emails sejam respondidos presto, porque é essa a idéia que o novo mundo nos vende. De que tudo pode ser conseguido a qualquer momento, em qualquer lugar, o mais rápido possível. De que tudo pode ser visto e sentido em tempo real. Agora.

E eu continuo olhando para a minha caixa de emails vazia. Que droga.

segunda-feira, novembro 12, 2007

Desintegrado por srta. Jones

Quantas vezes alguém pode estragar tudo na vida? Quantas vezes você pode jogar uma chance de ouro no lixo? Quantas vezes alguém precisa sentir um arrependimento mortal para aprender a não colocar tudo a perder?

O cara tinha tudo para ser um sucesso. Todo mundo o via como alguém que seria grande um dia. Só ele não percebia isso. Não percebia que era bonito, que era inteligente, que era alguém para se admirar. Ele só sabia errar, vez atrás de vez. Era um especialista em desistir, em não tentar. E a vida sempre sorria para ele. Como sorri para poucos.

Um dia ele estava saindo de uma entrevista de emprego e tomou um tombo. Bateu com a cabeça no meio-fio e por um triz não foi atropelado. Teve uma concussão e ficou em coma por duas semanas. Quando acordou, não sabia quem era e falava em italiano. Não reconheceu a família nem a namorada. Levou três meses para lembrar que sua língua materna era português e que era formado em administração. Estava perdido. Totalmente perdido.

Mais dois meses e ele estava voltando a levar uma vida próxima do normal. Abriu sua caixa de emails e viu que havia sido aprovado na entrevista. O email datava de quatro meses e meio atrás. Outra chance perdida. Outra vitória que estava na sua mão. Só que havia uma porcaria de meio-fio no seu caminho, num dia em que tudo poderia dar certo. O que ele vai fazer agora?

Pelo menos ele aprendeu a falar italiano.

sábado, outubro 13, 2007

Mergulho por Srta. Jones

Às vezes é difícil situar a própria vida sem recorrer ao status da vida alheia. De quando em quando me faço intrusa e busco o paradeiro de amigos perdidos com o tempo. Outras vezes sou surpreendida com notícias de gravidez, mudança ou viagens inesperadas. Estou numa daquelas idades estranhas em que tudo à minha volta parece estar se encaixando, enquanto eu continuo fora do lugar. Mas sou eu mesmo o elemento estranho ou são os outros que estão mudando rápido demais?

Com alguns poucos cliques descubro que uma antiga paquera metamorfoseou-se em homem casado, pai de um filho e respeitável servidor público. Outro dia, a notícia da gravidez de uma colega dos tempos de ginásio quase me fez engasgar com o café. Fora aqueles que já asseguraram seus empregos em escritórios de advocacia, agências de publicidade, hospitais etc, ou os que saíram da cidade ou do país e levam, enfim, uma vida séria. Nada como a minha própria vida.

A minha existência é, para quase todos os propósitos, bastante fútil. Meu tempo é dividido entre estudar, sair, dormir, ver televisão, jogar horas e horas fora no computador, fazer compras (eu disse que era uma existência basicamente fútil), ler. Às vezes me entrego à cada vez mais difícil tarefa de imaginar o futuro, projetar algo que subsista por mais de duas semanas. Quando se chega à minha idade, na minha atual situação, pensar no futuro nada mais é do que fonte impressionante de pavor. Olhar para a frente e admitir que há vida para além do próximo ano é aceitar que estou, hélas, envelhecendo. E envelhecer antes dos trinta traz cabelos brancos. Muitos. E rugas. E a necessidade de se jogar fora metade do guarda roupa por simples receio de parecer ridícula e imprópria perante a sociedade. E é também admitir que existe uma nova geração só esperando que eu apague as luzes para invadir o espaço que eu e tantos outros ocupamos por tanto tempo. É assumir que sim, o tempo passou. Infelizmente, para todos nós.

Mas eu não estou realmente preocupada em ser adulta. Quando descubro que o ex-flerte casou, que a ex-colega será mãe, que um conhecido qualquer já é sócio em alguma firma de advocacia, não me sinto como se estivesse no caminho errado. Eu não queria estar casada. Eu não queria ser mãe. Eu não queria assumir mais responsabilidades do que a experiência me permitiria. Não mesmo. Eu não observo a vida destas pessoas e penso, arrependida, "poderia ser eu. Poderia ser a minha vida". Não. Eu penso, apavorada, "poderia ser eu. Poderia ser a minha vida". Descobri há muito tempo que a minha vida seria diferente da dos meus contemporâneos. A minha pressa sempre foi outra. O momento de "sossegar", para mim, habita em pesadelos. Não que eu não queira crescer. Não tenho pretensões de ser eternamente jovem e passar o resto dos dias imaginando qual será meu próximo destino turístico. Mas não entendo o "crescer", o "ser adulto" como ter de comprar um pacote completo de atribuições que fazem a vida parecer uma camisa de força. Não quero ser uma trintona amarga como muitos de meus amigos e colegas, infelizmente, serão. Sempre imagino se, lá no fundo, eles não se arrependem pela pressa das escolhas. Talvez eu esteja errada. Talvez eles sejam felizes. Mas, por via das dúvidas, eu continuo fazendo parte do pequeno porém barulhento grupo dos que ainda não querem envelhecer.

segunda-feira, outubro 01, 2007

Sopro por Srta. Jones

A felicidade é dos outros. Minha, só mesmo a mania de observá-la. Passo horas, dias, semanas olhando fotos com sorrisos que não são meus, abraços que não me envolvem, beijos que não me tocam. Fotos em preto e branco, coloridas, casais, amigos, a vida que eles sabem viver e eu só sei deixar passar. Quando isso acaba?

Eu pensei que fosse aprender algum dia. Aprender a fazer esta coisa tão incrível e simples. Mas existe um vazio tão grande entre o que eu desejo e o que eu realmente sei. Algo em mim diz que se eu pudesse me dividir entre uma marionete e seu animador eu seria mais feliz. Em tese eu sei tudo, absolutamente tudo o que há para se saber sobre como ser uma pessoa satisfeita. Meus conselhos e confissões no papel são a prova. Mas, na prática, eu sou tragicamente incapaz.

Eu sou a exata imagem daquele que passa seus dias olhando pela janela, vendo os outros fazerem tudo aquilo que ele desejaria fazer. Mas eu não tenho liberdades. Talvez eu não me dê liberdades. Eu não preciso de juízes ou prisões. Eu mesma resolvo isso. Para escrever estas linhas eu criei um limite, e tenho medo de ultrapassá-lo.

Eu chego à conclusão de que realmente não sei o que fazer.

quinta-feira, setembro 27, 2007

Revolto por Srta. Jones

Céus, eu estou perdida. Tinha tantas coisas a fazer mas estou aqui, parada, sem direção, balançando ao sabor do meu estado de espírito. "Um barco à deriva" é um clichê e não corresponde à verdade. Eu ainda não saí do cais. Estou atracada, com a âncora lançada tão fundo que prefiro não mergulhar para soltá-la. Eu não tenho um plano de viagem, e meus mapas estão todos obsoletos. Já rasguei um sem número de esboços de rotas que poderia traçar, e abortei igual porção de investidas ao mar. A ferrugem sobe devagar pelo casco e posso sentir seu cheiro. Eu ainda estou aqui.


Conheci a história de um viajante que tinha três objetivos a cumprir. Três destinos a alcançar, todos mutuamente excludentes. Ele tinha pressa e queria conhecer todos de uma vez. Não era possível. Um dia ele desejou ser três ao mesmo tempo, para ir a cada um dos lugares que escolheu. Acordou no dia seguinte e descobriu que os três lugares não existiam mais.


Posso engendrar metáforas, posso contar fábulas. Mas onde está o caminho que eu devo seguir?

sábado, agosto 11, 2007

Do frio por Srta. Jones

Eu tinha o hábito de ficar horas olhando pela janela. Eu queria ver alguma coisa, mas nada em específico - as pernas, os braços, os carros, partes, pedaços de quem passava, uma nesga de calçada, uma aba de chapéu, filetes de um guarda-chuva, pessoas paradas no ponto de ônibus. Minha mãe sempre entrava no quarto e me perguntava o que eu estava vendo. Eu respondia, "nada", e continuava o que estava fazendo. Ela foi muito boa por não ter tomado nenhuma atitude a respeito. Não era nada com que ela devesse se preocupar, afinal. Era só, talvez, um mau hábito. Mau apenas porque cansava minhas pernas e minha coluna - mas isso foi prontamente resolvido no dia em que levei uma cadeira junto comigo antes de começar minha observação diária. Com o tempo, o assento duro de madeira se tornou desconfortável, e eu logo acrescentei uma almofada ao seleto grupo de objetos que me acompanhavam.

Eu vi muitas coisas. Pessoas atrasadas correndo atrás de ônibus, casais de mãos dadas, homens e crianças passeando com cachorros, senhoras carregando sacos de pão e vendedores de canetas. Às vezes podia ver minha mãe chegando do trabalho, ou meu irmão indo se encontrar com alguma de suas namoradas. Via o gato amarelo que teimava em dormir sobre o parapeito externo da janela da vizinha - para sua sorte, ela nunca o pegou. Vi meninas de uniforme andando em grupos de cinco ou seis, sempre sorridentes e pulando, rindo furtivamente, sendo bobas. Vi bêbados que não sabiam como voltar para casa, vi carros de polícia e ambulâncias, lixeiros esvaziando latões; vi o entregador de jornal e o carteiro; um homem louco que às vezes parava em frente ao portão e brigava com um inimigo imaginário. E, algumas vezes, eu via você. O brilho do seu cabelo, tão forte que transportava até mim o cheiro do seu xampu de pêssego. Suas roupas, sempre tão limpas e brancas, sem nenhum amassado; suas pernas compridas e rápidas, subindo e descendo a rua e os degraus. Algumas vezes você cumprimentava minha mãe; noutras, estava com tanta pressa que não percebia ninguém por perto. E acredito que nunca soube que sempre te observei, daquele meu pequeno canto que tanto prezo, e do qual ainda sinto saudades.

Chamam-me do outro cômodo. Preciso ir. Prometo que continuo minha história. Ah, são tantas coisas que eu tenho para dizer. Vi tanta beleza e tanto sofrimento... se ao menos você soubesse. Ah, mas saberá, sim, sim, saberá, pois pretendo contar tudo. Juro que não vou deixar nenhum detalhe para trás. Agora devo ir. Espere por mim. Promete?

domingo, julho 01, 2007

Caleidoscópio por Srta. Jones

Seus olhos enormes acompanham a modificação. Seus cabelos já não são mais louros. Suas unhas, antes rosas, estão agora vermelhas. Ela não é mais a mesma de antes. Um dia ela come morangos; noutro, uma banana split. De manhã, usa um vestido roxo; à noite, se esconde como uma tartaruga. A cada novo inimigo, uma nova personalidade. Ela não é uma, nem duas. Ela é várias, ao mesmo tempo, ou uma de cada vez. Suas 22 faces se confundem quando ela se vê refletida no espelho do seu quarto. Hoje ela não quer mais sair, mas nunca se sabe quando sua vontade vai mudar. Quando ela é recatada, prefere ler. Quando é ousada, prefere se aventurar pela noite. Um dia ela é solteira, noutro, casada. Ela nunca sabe realmente o que quer.

Sua alma está se desintegrando. Ela precisa ser uma. Suas faces a matam aos poucos, seu corpo não sabe mais como deve ser. Ela quer se libertar das máscaras. Ela quer encontrar alguém. Mas como, se ela não sabe quem ela mesma é?

As máscaras vão se desdobrando. Morangos, bananas, roxo, tartarugas, 22 faces, dia e noite. Ela não sabe quem ela é. Ninguém realmente sabe.

domingo, junho 24, 2007

Concreto por Srta. Jones

Solidão
Solidez
Solidariedade
Sólido
Soldado
Soldadeiro
Soldadinhos
Solitude
Solitário
Solipsismo
Solilóquio
Solidéu
Solidário
Solicitante
Solenidade

quinta-feira, junho 07, 2007

Silêncio por Srta. Jones

O papel dizia que o endereço era aquele. Ela conferiu duas vezes para ter certeza de que estava diante do número certo. Tocou a campainha e esperou. Ninguém atendeu. Ela tocou de novo, mas de novo ninguém apareceu. Ela testou a maçaneta, e viu que a porta estava destrancada. Resolveu entrar, pois tinha hora marcada para estar ali dentro, e não queria se atrasar.


A pequena antesala estava escura. Ela conseguiu enxergar uma porta ao final do corredor e se dirigiu até lá. Encostou o ouvido na madeira mas tudo o que havia do outro lado era silêncio. Ficou na dúvida sobre o quê fazer, afinal, àquela hora, deveria haver alguém esperando por ela ali. Ela hesitou por alguns segundos e decidiu que de nada adiantava permanecer naquela saleta vazia. Abriu a porta, e encontrou um largo corredor com outras dezesseis portas. O silêncio grassava.


A situação era extremamente perturbadora. Afinal, por que não havia ninguém ali? Um dia ela recebeu um telefonema avisando-a de um compromisso naquele local, indicando dia e hora em que ela deveria comparecer. Ela não sabia muito bem do que se tratava mas resolveu ir ainda assim, porque não se sentia em condições de dizer não. Chegando lá, não encontrou ninguém. Quem tinha telefonado? Que compromisso era aquele afinal? Alguém estava tentando se divertir às custas dela, talvez. Ela não sabia.


Decidiu que seu tempo era precioso e que deveria ir embora. Antes de ir quis dar uma última chance para que alguém aparecesse. Resolveu gritar, o mais alto que pôde, "Tem alguém aí?". Segundos e minutos passaram e o silêncio continuou. Ela pensou ouvir passos, mas era alguém batendo um martelo perto dali. Passou os olhos por todas aquelas portas e testou-as, uma a uma, para ver se abririam. Todas estavam trancadas.


Parou perto da porta por onde entrou e resolveu gritar de novo. Ninguém respondeu. De novo, ela foi ignorada. Já estava virando um hábito. Um hábito que ela preferia não adquirir.

terça-feira, maio 22, 2007

O Passo por Srta. Jones

Xxxxx, 18 de Janeiro de 1949.


Sinto saudades de velhos amigos. Pessoas que há tanto tempo não vejo e não ouço. Recebo tantas cartas, tantos telefonemas, e mesmo assim continuo esperando que aqueles de quem mais nada sei possam aparecer para mim a qualquer instante.


Há tantos dias que não escuto mais o riso das crianças. Não sei se já foram embora, ou se estão apenas caladas. Elas costumavam brincar todos os dias em frente ao meu jardim, mas eu nunca as via. Somente ouvia seus gritinhos excitados e felizes, suas brincadeiras divertidas e, às vezes, um pouco violentas. Talvez elas tenham retornado à sua casa, à sua escola. Talvez estejam apenas descansando ou ouvindo histórias de terror. Espero que não seja algo pior.


Não sei quanto tempo faz exatamente que não vejo a luz do sol. Todas as cortinas estão cerradas e nunca me aproximo das janelas. Fico somente observando, de longe, a paralisia muda do cetim vermelho, esperando que o vento sopre e faça tudo em volta balançar. Minha pele está sempre fria e meus pés necessitam de constante atenção. Ando sempre com meias as mais pesadas. Não passarão muitos dias e também minhas mãos estarão congeladas. Preciso colocar logo minhas luvas.


Não me lembro quando fiz uma refeição pela última vez. Lembro-me apenas de, há alguns dias, ter-me sentado à mesa e imaginado estar envolto por alegres convivas, que bebiam e sorriam e brindavam à minha saúde. Divertiam-se como os convidados de minha última festa. Tudo passou tão rápido, o tempo, a festa, a alegria, os momentos de felicidade e íntima paz. Estávamos todos prestes a nos perder, porque os dias passariam e tudo o que conhecíamos de familiar e perfeito mudaria. Nada é hoje como havia sido até poucos momentos atrás. Todo o nosso conforto, tudo evaporou.

Por isso, hoje, estou vagando por esta casa, sozinho. Disseram-me que deveria esperar, pois, a qualquer momento, poderia ser minha vez de partir. Fecharam minhas janelas e colocaram pesados cadeados em minhas portas. Recebo cartas e telefonemas mas fui proibido de responder. Instruíram-me a aguardar em silêncio, enquanto não chega minha vez. Escondi meu diário para que não pudessem me privar deste último prazer. Escrevo para que algum dia, no futuro, um espírito curioso encontre estas páginas e saiba exatamente como tudo aconteceu. Quero deixar registrado aqui que eu, Y, estou prestes a embarcar em uma viagem muito longa sem destino definido. Não sei quem serão meus companheiros de empreitada, e nem quem me receberá em meu destino. Não sei mesmo se esta não será minha viagem derradeira. Ignoro o que planejam para mim, mas sei que esta é uma viagem que preciso fazer. Há muitas luas me disseram que este dia chegaria. E não importam os sacrifícios que hoje preciso fazer, esta é minha missão e cumpre a mim realizá-la a contento. De todas as minhas obrigações, esta é a única da qual não posso de nenhuma forma fugir. Tenho me preparado para o momento desde o dia em que me foi dado conhecer que iria partir. Pode acontecer a qualquer minuto. Não temo. Desde há muito tempo, estou pronto para ir.

terça-feira, maio 08, 2007

O Plano por Srta. Jones

"Quer dizer que nós podemos?"

"Sim, nós podemos."

"Mas será que não vai dar problema? Quer dizer, a gente não vai parar na cadeia por causa disso, né?"

"Bem, acho que não. Ah, e também não importa."

"Como assim, cara, 'não importa'?! Se isso vai colocar a gente em cana então eu vou pular fora."

"Ah, larga de ser covarde. A gente pode fazer isso."

"Mas e sem alguém vir? E se algum vizinho der com a língua nos dentes, o que a gente faz?"

"Foge."

"Ah tá, como se fosse fácil, assim. A polícia acha a gente em qualquer lugar, cara."

"Acha nada. Fora que eles vão até achar bom se a gente fizer isso. A gente vai prestar um serviço à comunidade."

"Pára de brincar, cara. O negócio é sério."

"Tá, parei. Mas olha, pensa assim: o importante é que a gente pode, e deve. Se a polícia vai ficar sabendo, aí já é outra história."

"É, pode ser. Eu sei que a gente pode. Eu só fico com medo de isso dar a maior merda depois. Sabe como é, eu tenho os meus filhos pra criar. Não posso deixar minha família na mão."

"Tudo bem, mas a gente dá um jeito de se safar se o negócio ficar esquisito pro nosso lado. Eu tenho os meus contatos, cara. Eu me garanto e ainda coloco você na fita também."

"Beleza. Se é assim..."

"Então, tá combinado?"

"Combinado."

"Assim é que se fala. Você sabe que a gente pode."

"É, a gente pode mesmo. Amanhã a gente vai linchar o proprietário."

***

Inspirado em "Let's Lynch the Landlord", dos Dead Kennedys. A autora desde já se declara contra linchamentos e qualquer outro tipo de agressão física, verbal, auditiva ou visual.

quinta-feira, abril 12, 2007

1 e 2 por Srta. Jones

"Há quanto tempo nós chegamos aqui?"

"Já deve fazer algumas horas, eu acho."

"Tanto tempo assim?"

"Um-hum."

"É... é mesmo. Deve ter umas... três, quatro horas?"

"Acho que mais."

"Mais?"

"É. Umas sete horas."

"Tudo isso?! Meu Deus. E o que a gente fez aqui esse tempo todo?"

"Nada."

"Nada?"

"É, nada."

"Caramba. Tanto tempo perdido pra nada. Tem certeza que a gente não fez nadinha mesmo?"

"Um-hum."

"Puxa vida."

"É."

"Teve aquela hora em que a gente assistiu à tv. Lembra?"

"Lembro. Mas foi pouco tempo."

"Quanto?"

"Uns quarenta minutos, mais ou menos."

"E depois a gente fez o quê mesmo?"

"A gente ligou pro cara do aquecedor, ele não atendeu. Depois a gente jantou, aí sua mãe ligou e você falou com ela durante cinco minutos, e enquanto isso eu lixei minhas unhas."

"E depois?"

"Depois a gente ficou lendo o jornal, procurando alguma coisa pra fazer. E só."

"Então... quer dizer que a gente passou esse tempo todo procurando o que fazer, foi isso?"

"É, acho que sim."

"Nossa. Que desperdício."

"Também acho."

"Da próxima vez a gente não vai perder tanto tempo. Se não surgir nada pra fazer, a gente inventa, nem que seja um baralho ou uma sinuca, ou um livro, sei lá."

"Não vai ter próxima vez, pelo menos não esta semana."

"Ué, por quê não?"

"Porque amanhã você trabalha, e depois de amanhã também, esqueceu?"

"Ih, é mesmo. Não é que eu tinha esquecido?"

"É, deu pra perceber."

"Poxa, que pena. Bom, pelo menos a gente se encontrou e colocou a conversa em dia."

"A gente quase não conversou."

"Sério?"

"Sério."

"Meu Deus. Quanto tempo perdido."

"É."

"Bom, mas pelo menos semana que vem a gente vai se ver de novo."

"Se eu estiver por aqui."

"Você não vai estar?"

"É provável que não. Eu viajo no sábado e não sei quando volto."

"..."

"..."

"Bom, então eu já vou. Me liga quando você voltar. Boa viagem."

"Obrigada. Até."

"Até."

terça-feira, abril 10, 2007

Cromossomo X por Srta. Jones

Elas caminham como se não se importassem se estão sendo olhadas ou não, mas na verdade elas se importam. Elas são mulheres que fazem gênero.

Elas usam minissaias e seguram os cigarros na ponta dos dedos. Elas são mulheres que fazem gênero.

Quando estão numa boate, dançam de olhos fechados e lentamente, como se todos as atenções devessem se voltar somente para elas. Elas são mulheres que fazem gênero.

Quando querem seduzir um homem, caminham dançando em sua direção como se fossem a mulher mais incrivelmente sexy do mundo. Elas são mulheres que fazem gênero.

Quando saem em grupo com as amigas, exageram nas insinuações de homoerotismo. Elas são mulheres que fazem gênero.

Elas se esforçam para parecem sempre blasés, mas nunca querem deixar de ser notadas. Elas são mulheres que fazem gênero.

Elas se auto-definem como "muito complexas" e dizem odiar todos os rótulos. Elas são mulheres que fazem gênero.

Elas alimentam o sonho de um dia serem exatamente como Scarlett Johansson, trejeitos, caras e bocas. Elas são mulheres que fazem gênero.

Quando saem à noite, é a elas que todos os homens perdidos se dirigem. Elas são mulheres que fazem gênero.

segunda-feira, abril 02, 2007

Um dia, alegria por Srta. Jones

Ele sempre tinha uma história para contar. Não era fácil ser ele. O tempo todo, todos os dias e anos, pensando e criando e enlouquecendo as pessoas com suas idéias. Ele não era um santo.

Suas crias nos fizeram pensar. Mais do que isso, nos fizeram sentir. Não tinha como alguém não se empolgar diante de tanto entusiasmo, loucura e arte. Só ele conseguia disso. E ele nunca nos decepcionou.

Seus momentos foram aparecendo e se tornando cada vez mais freqüentes e duradouros. Ele era dono de sua obra e ninguém poderia fazer como ele. Era inimitável e merecedor de cada segundo de adoração que atraía. Podia-se dizer mesmo que era um gênio. Mas os gênios sempre vivem por muito tempo.

Com ou sem uma musa, sua arte seria igualmente bela, simples, elétrica e subestimada. E ele sempre fez mais. Hoje mais do que ontem, e assim foi até o dia em que ele não pôde mais. Justamente no momento em que todos se perguntavam: "e agora, do que mais ele é capaz?"

Sempre tão compenetrado, sempre sendo a alma da sua criação. Sempre sorrindo, ou mascando um chiclete. Às vezes de óculos escuros, e algumas mechas caindo sobre os olhos. Sempre um artista, no sentido mais puro e idealista e menos vulgar do termo. Um dia ele teve de ir. Eu só soube três dias antes. Mal tive tempo de me despedir.

Espero um dia vê-lo de novo. Até lá, dançarei todas por você, meu querido.