terça-feira, janeiro 16, 2007

De partida por Srta. Jones

A dor começou na sexta de manhã. Era uma pressão no peito, bem no meio, parecia um elefante sentado sobre uma formiga. Se fosse um pouco mais à esquerda e para baixo, pensaria que era o coração. Mas era bem no meio.

Piorava quando eu saía. Quando eu falava com pessoas, quando eu me lembrava. Em casa, eu tinha que me preocupar com outra dor. Quando eu estava sozinha.

Hoje, só hoje, eu não senti dor quando estava com outras pessoas por perto. Nenhum dos convivas de hoje me lembrava do que eu não queria sentir. Ninguém ali, nenhum rosto, nenhuma memória. Só risos, risadas, sorrisos. Amigos novos, amigos velhos, conhecidos, desconhecidos. Ninguém lembrava. Nada.

Fiquei sozinha no ponto de ônibus e a dor voltou. Percebi que ela havia mudado de capricho. Agora doía mais quando ficava só. Doeu enquanto caminhava para casa. Segurei as chaves e lembrei. Quando cheguei, pensei de novo nos amigos. E aí parou de doer. Amigos maravilhosos eu tenho.

Eu vou partir sozinha. Não sei se vai doer. Só vou saber quando chegar. Até lá tenho mais amigos para encontrar. Mais dor para sentir? Só o tempo, só o tempo.

sábado, janeiro 06, 2007

De novo, só mais uma vez por Srta. Jones

"Eu sou jovem demais para viver assim."

E foi com esse pensamento que ela enrolou a echarpe rosa no pescoço e saiu rumo à calçada. Ela ainda não sabia exatamente para onde deveria ir, ou o que deveria fazer. Este era o frescor de uma nova atitude, uma excitação que ela sabia desconhecer. Um passo à frente, dois suspiros por causa do frio - seus braços envolviam a cintura e apertavam o casaco vermelho ainda mais rente ao corpo. "Queria sempre viver assim. Sem saber onde ir, ou por onde começar." Com apenas o calor do seu corpo e do café queimando a barreira de ar frio que se formou em torno da vida.

Na primeira esquina, um casal de idosos que esperavam uma filha entretida num baile comunal qualquer. Seus olhares nervosos equilibravam a solenidade calma com que se prostavam em frente à porta de entrada de uma velha barbearia. Ela meneou um "boa noite" e seguiu caminhando como se quisesse enganar a todos e fazê-los crer que sabia exatamente para onde estava indo.Ela caminhou por ainda mais algumas poucas dezenas de minutos e por muitas lojas fechadas, bares repletos de bêbados da meia-noite e estudantes arruaceiros aproveitando o indulto de fim de semana. Os carros passavam com suas buzinas zunindo e seus condutores rezando por um cruzamento livre. O ar ficava cada vez mais gelado mas ela obstinava em seguir, porque sabia com toda a certeza que aquele tinha sido o último dia em que viveria daquela velha maneira. Tudo era novo dali por diante, e tudo o que ela precisava fazer era seguir em frente.

Quando ela finalmente avistou a porta amarela a rua já estava tomada de tipos estranhos e diletantes em busca de reconhecimento rápido. Ela não tardou em procurar o lugar mais afastado o possível daqueles modistas de última hora, e encontrou seu casulo numa lanchonete que, apesar do avançado da hora, funcionava ali a pleno vapor, abrigando os degredados da noite e os solitários. Ela foi até o balcão e pediu uma xícara de café. A televisão ligada transmitia um daqueles filmes de fim de noite, e casais escondidos em mesas de canto confidenciavam prazeres culpados sobre copos e mais copos de gim. Ela não se prendeu em nenhum foco específico até seu café chegar e tomar toda sua atenção. O calor da xícara esquentou suas narinas e maçãs do rosto, e ela se sentiu confortável de novo. Uma onda de energia passou próxima de seu braço, e ela sentiu que alguém havia se sentado ao seu lado. Ela não tinha certeza se deveria virar e olhar quem era, e o café estava muito bom para ser negligenciado naquele exato momento. Ela calculou que seria melhor esperar alguns segundos, mas a pessoa que havia gerado aquela onda de energia decidiu não esperar por ela. Ele chamou seu nome. Ela não pôde fazer nada além de responder.

"Oi."

"Você aqui? Que surpresa. Eu pensei que esse tipo de lugar te causasse repulsa."

"Não hoje."

"Não hoje? E por que não?"

"Porque hoje eu decidi que vou viver. Mesmo que pra isso eu tenha que me misturar aos porcos."

"Eu sabia que você não tinha mudado em nada."

"Aí é que você se engana. Tá vendo esse café aqui? É a única coisa que eu vou guardar da minha antiga vida. Isso e as roupas."

"Mas você não acha que esse café vai acabar ficando velho? E frio?"

Ela sorriu para a piada sem graça dele.

"Não se esqueça dos cds, e dos dvds. E dos livros também. Você não consegue viver sem seus livros."

"Eu consigo viver sem qualquer coisa, porque eu posso viver com qualquer coisa."

"Muito filosófico. Não entendi nada."

"Não é pra entender. Você por acaso entende estado de espírito? Você não entende essas coisas, você sente. Aqui. Se você tentar entender vai acabar não sentindo nada."

"Sei. Mas por que mesmo você está aqui?"

"Porque eu resolvi tapar o meu nariz e dançar no chiqueiro."

"Se isso te satisfaz."

Ela deu de ombros e terminou de tomar o café. Pagou com os trocados que tinham ficado no bolso da calça e se levantou.

"Você vai ficar aí?"

"Vou. Tô esperando uns amigos meus."

"Eu não estou esperando ninguém. Eu vou entrar logo na lama porque só existe uma pérola e ela tem de ser pega por mim."

"Você e os porcos. Vai ser uma briga interessante."

"Desde que eu consiga vencer."

Ela acenou com a cabeça e saiu. A porta amarela estava escondida atrás de uma enorme fila. Ela foi direto até o segurança e mostrou sua carteira. Ele sorriu e levantou a corda para que ela entrasse. A caça ao tesouro havia começado.