segunda-feira, dezembro 31, 2007

Ano Velho por Srta. Jones

Todo ano ela fazia tudo igual. Retirava o excesso de cinismo, diluía em água o sarcasmo e dava férias para o pessimismo. Todo ano ela acreditava que seria, enfim, diferente. Que a mesma esperança que natural e sorrateiramente tomava conta de si teria contagiado seus pares e tornado seus corações e mentes menos endurecidos e egoístas. Todos os anos ela se frustrava.

Não que todos fossem capazes de destruir seu espírito. Mas bastava o mau comportamento de um para tirar-lhe todo o prazer de esperar sempre pelo melhor. E o silêncio dos outros era anuência de que os maus precisavam para arruinar o seu futuro. Mesmo assim, todos os anos, como se esquecesse o fracasso do ano anterior, ela voltava a acreditar. Para ela não havia trauma - ou mesmo má impressão - e ela sempre chegava àquele momento com fé renovada, uma mente apagada de más recordações. E todos os anos ela terminava o dia com o coração dolorido. A garganta fechava e ela queria apenas fugir. Chorar sempre parecia fora de questão, mas com o tempo aquele passou a ser o único dia em que ela se entregava à fraqueza. Era o único fato de sua vida que ainda a tornava vulnerável. E era o que mais se repetia. Todos os anos, todos os dias.

Ignorâncias por Srta. Jones

Quando eu deveria andar na rua despreocupada, segura (de que um meteoro não cairá sobre mim ou que o alvo de uma metralhadora não encontrará o caminho de minha cabeça) e confiante (no fino trato de meus conterrâneos), sou bombardeada com a doença social que tornou todos os moradores desta cidade pacientes eternos e sem cura. Quando, porém, tomo parte em situações de socialização espontânea e descompromissada e mostro minha persona mais amigável, sou presenteada com o desprezo.

Quero atacar as duas faces da ignorância com dois sonoros, doloridos e pulsantes tapas.

sexta-feira, dezembro 21, 2007

Descrença por Srta. Jones

Tenho pensado muito sobre criatividade. Tanto que esbocei uma poesia sobre o assunto. O poema começava falando sobre bloqueio criativo e seguia até chegar à criação plena. Porém, nos últimos versos, travei. Por caminhos tortos, fui confrontada com as opiniões de que bloqueio criativo é um assunto sobre o qual não se deveria escrever, pois seria um "clichê", e que existem coisas que não valem a pena ser publicadas. O meu pensamento não poderia ser mais diferente.

O maior clichê que existe é o amor. Escreve-se sobre ele o tempo todo (e fala-se e canta-se...). Todo ser humano que já juntou pena e papel versou sobre o tal sentimento, pelo menos alguma vez na vida. Pode ser um poeminha infantil, uma carta pretensiosa de algum adolescente, um livro, um soneto. Obras publicadas ou aquelas linhas que vivem eternamente dentro de uma gaveta ou caderno. E quem seria louco de dizer que não se deve escrever sobre o amor? Se ele acontece todos os dias e em cada quarto vazio ele pode morrer, sempre haverá algo de novo a ser dito. A sua repetição não esgota seu significado - tanto sentimental quanto artístico. Como o bloqueio criativo é o pesadelo de todos que têm necessidade de escrever, por gosto ou profissão, ele é um assunto que nunca se exaure. Não importa se é um clichê.

Em relação à qualidade do que se publica, o problema é ainda mais grave. Questionar a validade de uma obra (ou mesmo de um simples texto de internet) e tentar determinar seu mérito é, em última instância, tentar colocar um filtro no processo criativo. É uma forma artificial de se estabelecer um bloqueio - o grande inimigo de qualquer forma de arte. O papel de definir o que "serve" e o que não "serve" cabe a quem escreve - e esse papel é exercido através do bom senso. A quem lê, resta julgar por termos extremamente pessoais. Imagine se cada um de nós pudesse decidir que obras e quais autores merecem ser publicados - e pudéssemos eliminar aquilo que já estivesse publicado e que não se enquadrasse no nosso conceito de "bom". Mataríamos a herança cultural uns dos outros - porque, ó obviedade, o que é bom para mim não é necessariamente bom para outras pessoas. Sumiriam com os livros de Camus e Nabokov e eu não teria outra opção a não ser queimar as obras de Henry Miller e Saramago. Para os sedentos de sangue e propensos a uma caça às bruxas não há cenário mais atraente. A mim, particularmente, nada disso interessa. Sou apenas mais uma "blogueira" que, com freqüência errática, gosta de colocar um pedacinho do próprio pensamento para que estranhos e amigos possam ler. Sou apenas mais um ser humano que precisa escrever.

segunda-feira, novembro 26, 2007

Agonias Modernas por srta. Jones

Estou enfim colocando para frente um projeto sonhado e meticulosamente planejado por dois anos e, por isso, tenho passado os últimos dias fazendo exaustivas pesquisas na internet e disparando emails diariamente. Não sou uma pessoa que manda muitos emails, até porque a maioria das pessoas com quem me relaciono de alguma forma está ao alcance do telefone (ou das mãos, dependendo de quem for). Por isso mesmo, quase nunca tenho que me preocupar com a capacidade alheia de responder às missivas eletrônicas em tempo hábil ou ao menos num período que seja minimamente tranqüilizante. Esta preocupação agora é minha companheira diária. Companheira desagradável, diga-se.

A incapacidade humana de corresponder aos anseios mais básicos do outro e a habilidade de deixar para amanhã o que deveria ser feito hoje são tão irritantes quanto crianças que andam com aqueles tênis de rodinhas pelos shoppings. Despertam em mim, em igual medida, a vontade semi-controlável de estapear os procrastinadores e obrigá-los a ir ao encontro daquilo que lhes é pedido (ou, no caso das crianças, deixar o pé na frente quando elas passarem - imaginem que belo seria o tombo).

De 15 emails enviados em sete dias com o mesmo objetivo para cinco remetentes, só obtive resposta para três, sendo que apenas um realmente satisfez (em parte) as minhas necessidades. E cá estou eu, dependendo da resposta de todas as mensagens para levar meu plano adiante. Nada pode ser realmente feito sem este feedback e o tempo está conspirando contra mim. E isso não importa a ninguém, porque ninguém além de mim está realmente preocupado com isso.

As conexões ultra-rápidas e os celulares transformaram a noção moderna de tempo e espera. É intolerável para alguém deste século ter de esperar algumas horas por um telefonema, ou um dia pela resposta de um email. E não muda nada saber que há tão pouco tempo se esperava dias e dias, semanas, por cartas, encomendas, encontros. Eu continuo querendo que os meus 15 emails sejam respondidos presto, porque é essa a idéia que o novo mundo nos vende. De que tudo pode ser conseguido a qualquer momento, em qualquer lugar, o mais rápido possível. De que tudo pode ser visto e sentido em tempo real. Agora.

E eu continuo olhando para a minha caixa de emails vazia. Que droga.

segunda-feira, novembro 12, 2007

Desintegrado por srta. Jones

Quantas vezes alguém pode estragar tudo na vida? Quantas vezes você pode jogar uma chance de ouro no lixo? Quantas vezes alguém precisa sentir um arrependimento mortal para aprender a não colocar tudo a perder?

O cara tinha tudo para ser um sucesso. Todo mundo o via como alguém que seria grande um dia. Só ele não percebia isso. Não percebia que era bonito, que era inteligente, que era alguém para se admirar. Ele só sabia errar, vez atrás de vez. Era um especialista em desistir, em não tentar. E a vida sempre sorria para ele. Como sorri para poucos.

Um dia ele estava saindo de uma entrevista de emprego e tomou um tombo. Bateu com a cabeça no meio-fio e por um triz não foi atropelado. Teve uma concussão e ficou em coma por duas semanas. Quando acordou, não sabia quem era e falava em italiano. Não reconheceu a família nem a namorada. Levou três meses para lembrar que sua língua materna era português e que era formado em administração. Estava perdido. Totalmente perdido.

Mais dois meses e ele estava voltando a levar uma vida próxima do normal. Abriu sua caixa de emails e viu que havia sido aprovado na entrevista. O email datava de quatro meses e meio atrás. Outra chance perdida. Outra vitória que estava na sua mão. Só que havia uma porcaria de meio-fio no seu caminho, num dia em que tudo poderia dar certo. O que ele vai fazer agora?

Pelo menos ele aprendeu a falar italiano.

sábado, outubro 13, 2007

Mergulho por Srta. Jones

Às vezes é difícil situar a própria vida sem recorrer ao status da vida alheia. De quando em quando me faço intrusa e busco o paradeiro de amigos perdidos com o tempo. Outras vezes sou surpreendida com notícias de gravidez, mudança ou viagens inesperadas. Estou numa daquelas idades estranhas em que tudo à minha volta parece estar se encaixando, enquanto eu continuo fora do lugar. Mas sou eu mesmo o elemento estranho ou são os outros que estão mudando rápido demais?

Com alguns poucos cliques descubro que uma antiga paquera metamorfoseou-se em homem casado, pai de um filho e respeitável servidor público. Outro dia, a notícia da gravidez de uma colega dos tempos de ginásio quase me fez engasgar com o café. Fora aqueles que já asseguraram seus empregos em escritórios de advocacia, agências de publicidade, hospitais etc, ou os que saíram da cidade ou do país e levam, enfim, uma vida séria. Nada como a minha própria vida.

A minha existência é, para quase todos os propósitos, bastante fútil. Meu tempo é dividido entre estudar, sair, dormir, ver televisão, jogar horas e horas fora no computador, fazer compras (eu disse que era uma existência basicamente fútil), ler. Às vezes me entrego à cada vez mais difícil tarefa de imaginar o futuro, projetar algo que subsista por mais de duas semanas. Quando se chega à minha idade, na minha atual situação, pensar no futuro nada mais é do que fonte impressionante de pavor. Olhar para a frente e admitir que há vida para além do próximo ano é aceitar que estou, hélas, envelhecendo. E envelhecer antes dos trinta traz cabelos brancos. Muitos. E rugas. E a necessidade de se jogar fora metade do guarda roupa por simples receio de parecer ridícula e imprópria perante a sociedade. E é também admitir que existe uma nova geração só esperando que eu apague as luzes para invadir o espaço que eu e tantos outros ocupamos por tanto tempo. É assumir que sim, o tempo passou. Infelizmente, para todos nós.

Mas eu não estou realmente preocupada em ser adulta. Quando descubro que o ex-flerte casou, que a ex-colega será mãe, que um conhecido qualquer já é sócio em alguma firma de advocacia, não me sinto como se estivesse no caminho errado. Eu não queria estar casada. Eu não queria ser mãe. Eu não queria assumir mais responsabilidades do que a experiência me permitiria. Não mesmo. Eu não observo a vida destas pessoas e penso, arrependida, "poderia ser eu. Poderia ser a minha vida". Não. Eu penso, apavorada, "poderia ser eu. Poderia ser a minha vida". Descobri há muito tempo que a minha vida seria diferente da dos meus contemporâneos. A minha pressa sempre foi outra. O momento de "sossegar", para mim, habita em pesadelos. Não que eu não queira crescer. Não tenho pretensões de ser eternamente jovem e passar o resto dos dias imaginando qual será meu próximo destino turístico. Mas não entendo o "crescer", o "ser adulto" como ter de comprar um pacote completo de atribuições que fazem a vida parecer uma camisa de força. Não quero ser uma trintona amarga como muitos de meus amigos e colegas, infelizmente, serão. Sempre imagino se, lá no fundo, eles não se arrependem pela pressa das escolhas. Talvez eu esteja errada. Talvez eles sejam felizes. Mas, por via das dúvidas, eu continuo fazendo parte do pequeno porém barulhento grupo dos que ainda não querem envelhecer.

segunda-feira, outubro 01, 2007

Sopro por Srta. Jones

A felicidade é dos outros. Minha, só mesmo a mania de observá-la. Passo horas, dias, semanas olhando fotos com sorrisos que não são meus, abraços que não me envolvem, beijos que não me tocam. Fotos em preto e branco, coloridas, casais, amigos, a vida que eles sabem viver e eu só sei deixar passar. Quando isso acaba?

Eu pensei que fosse aprender algum dia. Aprender a fazer esta coisa tão incrível e simples. Mas existe um vazio tão grande entre o que eu desejo e o que eu realmente sei. Algo em mim diz que se eu pudesse me dividir entre uma marionete e seu animador eu seria mais feliz. Em tese eu sei tudo, absolutamente tudo o que há para se saber sobre como ser uma pessoa satisfeita. Meus conselhos e confissões no papel são a prova. Mas, na prática, eu sou tragicamente incapaz.

Eu sou a exata imagem daquele que passa seus dias olhando pela janela, vendo os outros fazerem tudo aquilo que ele desejaria fazer. Mas eu não tenho liberdades. Talvez eu não me dê liberdades. Eu não preciso de juízes ou prisões. Eu mesma resolvo isso. Para escrever estas linhas eu criei um limite, e tenho medo de ultrapassá-lo.

Eu chego à conclusão de que realmente não sei o que fazer.

quinta-feira, setembro 27, 2007

Revolto por Srta. Jones

Céus, eu estou perdida. Tinha tantas coisas a fazer mas estou aqui, parada, sem direção, balançando ao sabor do meu estado de espírito. "Um barco à deriva" é um clichê e não corresponde à verdade. Eu ainda não saí do cais. Estou atracada, com a âncora lançada tão fundo que prefiro não mergulhar para soltá-la. Eu não tenho um plano de viagem, e meus mapas estão todos obsoletos. Já rasguei um sem número de esboços de rotas que poderia traçar, e abortei igual porção de investidas ao mar. A ferrugem sobe devagar pelo casco e posso sentir seu cheiro. Eu ainda estou aqui.


Conheci a história de um viajante que tinha três objetivos a cumprir. Três destinos a alcançar, todos mutuamente excludentes. Ele tinha pressa e queria conhecer todos de uma vez. Não era possível. Um dia ele desejou ser três ao mesmo tempo, para ir a cada um dos lugares que escolheu. Acordou no dia seguinte e descobriu que os três lugares não existiam mais.


Posso engendrar metáforas, posso contar fábulas. Mas onde está o caminho que eu devo seguir?

sábado, agosto 11, 2007

Do frio por Srta. Jones

Eu tinha o hábito de ficar horas olhando pela janela. Eu queria ver alguma coisa, mas nada em específico - as pernas, os braços, os carros, partes, pedaços de quem passava, uma nesga de calçada, uma aba de chapéu, filetes de um guarda-chuva, pessoas paradas no ponto de ônibus. Minha mãe sempre entrava no quarto e me perguntava o que eu estava vendo. Eu respondia, "nada", e continuava o que estava fazendo. Ela foi muito boa por não ter tomado nenhuma atitude a respeito. Não era nada com que ela devesse se preocupar, afinal. Era só, talvez, um mau hábito. Mau apenas porque cansava minhas pernas e minha coluna - mas isso foi prontamente resolvido no dia em que levei uma cadeira junto comigo antes de começar minha observação diária. Com o tempo, o assento duro de madeira se tornou desconfortável, e eu logo acrescentei uma almofada ao seleto grupo de objetos que me acompanhavam.

Eu vi muitas coisas. Pessoas atrasadas correndo atrás de ônibus, casais de mãos dadas, homens e crianças passeando com cachorros, senhoras carregando sacos de pão e vendedores de canetas. Às vezes podia ver minha mãe chegando do trabalho, ou meu irmão indo se encontrar com alguma de suas namoradas. Via o gato amarelo que teimava em dormir sobre o parapeito externo da janela da vizinha - para sua sorte, ela nunca o pegou. Vi meninas de uniforme andando em grupos de cinco ou seis, sempre sorridentes e pulando, rindo furtivamente, sendo bobas. Vi bêbados que não sabiam como voltar para casa, vi carros de polícia e ambulâncias, lixeiros esvaziando latões; vi o entregador de jornal e o carteiro; um homem louco que às vezes parava em frente ao portão e brigava com um inimigo imaginário. E, algumas vezes, eu via você. O brilho do seu cabelo, tão forte que transportava até mim o cheiro do seu xampu de pêssego. Suas roupas, sempre tão limpas e brancas, sem nenhum amassado; suas pernas compridas e rápidas, subindo e descendo a rua e os degraus. Algumas vezes você cumprimentava minha mãe; noutras, estava com tanta pressa que não percebia ninguém por perto. E acredito que nunca soube que sempre te observei, daquele meu pequeno canto que tanto prezo, e do qual ainda sinto saudades.

Chamam-me do outro cômodo. Preciso ir. Prometo que continuo minha história. Ah, são tantas coisas que eu tenho para dizer. Vi tanta beleza e tanto sofrimento... se ao menos você soubesse. Ah, mas saberá, sim, sim, saberá, pois pretendo contar tudo. Juro que não vou deixar nenhum detalhe para trás. Agora devo ir. Espere por mim. Promete?

domingo, julho 01, 2007

Caleidoscópio por Srta. Jones

Seus olhos enormes acompanham a modificação. Seus cabelos já não são mais louros. Suas unhas, antes rosas, estão agora vermelhas. Ela não é mais a mesma de antes. Um dia ela come morangos; noutro, uma banana split. De manhã, usa um vestido roxo; à noite, se esconde como uma tartaruga. A cada novo inimigo, uma nova personalidade. Ela não é uma, nem duas. Ela é várias, ao mesmo tempo, ou uma de cada vez. Suas 22 faces se confundem quando ela se vê refletida no espelho do seu quarto. Hoje ela não quer mais sair, mas nunca se sabe quando sua vontade vai mudar. Quando ela é recatada, prefere ler. Quando é ousada, prefere se aventurar pela noite. Um dia ela é solteira, noutro, casada. Ela nunca sabe realmente o que quer.

Sua alma está se desintegrando. Ela precisa ser uma. Suas faces a matam aos poucos, seu corpo não sabe mais como deve ser. Ela quer se libertar das máscaras. Ela quer encontrar alguém. Mas como, se ela não sabe quem ela mesma é?

As máscaras vão se desdobrando. Morangos, bananas, roxo, tartarugas, 22 faces, dia e noite. Ela não sabe quem ela é. Ninguém realmente sabe.

domingo, junho 24, 2007

Concreto por Srta. Jones

Solidão
Solidez
Solidariedade
Sólido
Soldado
Soldadeiro
Soldadinhos
Solitude
Solitário
Solipsismo
Solilóquio
Solidéu
Solidário
Solicitante
Solenidade

quinta-feira, junho 07, 2007

Silêncio por Srta. Jones

O papel dizia que o endereço era aquele. Ela conferiu duas vezes para ter certeza de que estava diante do número certo. Tocou a campainha e esperou. Ninguém atendeu. Ela tocou de novo, mas de novo ninguém apareceu. Ela testou a maçaneta, e viu que a porta estava destrancada. Resolveu entrar, pois tinha hora marcada para estar ali dentro, e não queria se atrasar.


A pequena antesala estava escura. Ela conseguiu enxergar uma porta ao final do corredor e se dirigiu até lá. Encostou o ouvido na madeira mas tudo o que havia do outro lado era silêncio. Ficou na dúvida sobre o quê fazer, afinal, àquela hora, deveria haver alguém esperando por ela ali. Ela hesitou por alguns segundos e decidiu que de nada adiantava permanecer naquela saleta vazia. Abriu a porta, e encontrou um largo corredor com outras dezesseis portas. O silêncio grassava.


A situação era extremamente perturbadora. Afinal, por que não havia ninguém ali? Um dia ela recebeu um telefonema avisando-a de um compromisso naquele local, indicando dia e hora em que ela deveria comparecer. Ela não sabia muito bem do que se tratava mas resolveu ir ainda assim, porque não se sentia em condições de dizer não. Chegando lá, não encontrou ninguém. Quem tinha telefonado? Que compromisso era aquele afinal? Alguém estava tentando se divertir às custas dela, talvez. Ela não sabia.


Decidiu que seu tempo era precioso e que deveria ir embora. Antes de ir quis dar uma última chance para que alguém aparecesse. Resolveu gritar, o mais alto que pôde, "Tem alguém aí?". Segundos e minutos passaram e o silêncio continuou. Ela pensou ouvir passos, mas era alguém batendo um martelo perto dali. Passou os olhos por todas aquelas portas e testou-as, uma a uma, para ver se abririam. Todas estavam trancadas.


Parou perto da porta por onde entrou e resolveu gritar de novo. Ninguém respondeu. De novo, ela foi ignorada. Já estava virando um hábito. Um hábito que ela preferia não adquirir.

terça-feira, maio 22, 2007

O Passo por Srta. Jones

Xxxxx, 18 de Janeiro de 1949.


Sinto saudades de velhos amigos. Pessoas que há tanto tempo não vejo e não ouço. Recebo tantas cartas, tantos telefonemas, e mesmo assim continuo esperando que aqueles de quem mais nada sei possam aparecer para mim a qualquer instante.


Há tantos dias que não escuto mais o riso das crianças. Não sei se já foram embora, ou se estão apenas caladas. Elas costumavam brincar todos os dias em frente ao meu jardim, mas eu nunca as via. Somente ouvia seus gritinhos excitados e felizes, suas brincadeiras divertidas e, às vezes, um pouco violentas. Talvez elas tenham retornado à sua casa, à sua escola. Talvez estejam apenas descansando ou ouvindo histórias de terror. Espero que não seja algo pior.


Não sei quanto tempo faz exatamente que não vejo a luz do sol. Todas as cortinas estão cerradas e nunca me aproximo das janelas. Fico somente observando, de longe, a paralisia muda do cetim vermelho, esperando que o vento sopre e faça tudo em volta balançar. Minha pele está sempre fria e meus pés necessitam de constante atenção. Ando sempre com meias as mais pesadas. Não passarão muitos dias e também minhas mãos estarão congeladas. Preciso colocar logo minhas luvas.


Não me lembro quando fiz uma refeição pela última vez. Lembro-me apenas de, há alguns dias, ter-me sentado à mesa e imaginado estar envolto por alegres convivas, que bebiam e sorriam e brindavam à minha saúde. Divertiam-se como os convidados de minha última festa. Tudo passou tão rápido, o tempo, a festa, a alegria, os momentos de felicidade e íntima paz. Estávamos todos prestes a nos perder, porque os dias passariam e tudo o que conhecíamos de familiar e perfeito mudaria. Nada é hoje como havia sido até poucos momentos atrás. Todo o nosso conforto, tudo evaporou.

Por isso, hoje, estou vagando por esta casa, sozinho. Disseram-me que deveria esperar, pois, a qualquer momento, poderia ser minha vez de partir. Fecharam minhas janelas e colocaram pesados cadeados em minhas portas. Recebo cartas e telefonemas mas fui proibido de responder. Instruíram-me a aguardar em silêncio, enquanto não chega minha vez. Escondi meu diário para que não pudessem me privar deste último prazer. Escrevo para que algum dia, no futuro, um espírito curioso encontre estas páginas e saiba exatamente como tudo aconteceu. Quero deixar registrado aqui que eu, Y, estou prestes a embarcar em uma viagem muito longa sem destino definido. Não sei quem serão meus companheiros de empreitada, e nem quem me receberá em meu destino. Não sei mesmo se esta não será minha viagem derradeira. Ignoro o que planejam para mim, mas sei que esta é uma viagem que preciso fazer. Há muitas luas me disseram que este dia chegaria. E não importam os sacrifícios que hoje preciso fazer, esta é minha missão e cumpre a mim realizá-la a contento. De todas as minhas obrigações, esta é a única da qual não posso de nenhuma forma fugir. Tenho me preparado para o momento desde o dia em que me foi dado conhecer que iria partir. Pode acontecer a qualquer minuto. Não temo. Desde há muito tempo, estou pronto para ir.

terça-feira, maio 08, 2007

O Plano por Srta. Jones

"Quer dizer que nós podemos?"

"Sim, nós podemos."

"Mas será que não vai dar problema? Quer dizer, a gente não vai parar na cadeia por causa disso, né?"

"Bem, acho que não. Ah, e também não importa."

"Como assim, cara, 'não importa'?! Se isso vai colocar a gente em cana então eu vou pular fora."

"Ah, larga de ser covarde. A gente pode fazer isso."

"Mas e sem alguém vir? E se algum vizinho der com a língua nos dentes, o que a gente faz?"

"Foge."

"Ah tá, como se fosse fácil, assim. A polícia acha a gente em qualquer lugar, cara."

"Acha nada. Fora que eles vão até achar bom se a gente fizer isso. A gente vai prestar um serviço à comunidade."

"Pára de brincar, cara. O negócio é sério."

"Tá, parei. Mas olha, pensa assim: o importante é que a gente pode, e deve. Se a polícia vai ficar sabendo, aí já é outra história."

"É, pode ser. Eu sei que a gente pode. Eu só fico com medo de isso dar a maior merda depois. Sabe como é, eu tenho os meus filhos pra criar. Não posso deixar minha família na mão."

"Tudo bem, mas a gente dá um jeito de se safar se o negócio ficar esquisito pro nosso lado. Eu tenho os meus contatos, cara. Eu me garanto e ainda coloco você na fita também."

"Beleza. Se é assim..."

"Então, tá combinado?"

"Combinado."

"Assim é que se fala. Você sabe que a gente pode."

"É, a gente pode mesmo. Amanhã a gente vai linchar o proprietário."

***

Inspirado em "Let's Lynch the Landlord", dos Dead Kennedys. A autora desde já se declara contra linchamentos e qualquer outro tipo de agressão física, verbal, auditiva ou visual.

quinta-feira, abril 12, 2007

1 e 2 por Srta. Jones

"Há quanto tempo nós chegamos aqui?"

"Já deve fazer algumas horas, eu acho."

"Tanto tempo assim?"

"Um-hum."

"É... é mesmo. Deve ter umas... três, quatro horas?"

"Acho que mais."

"Mais?"

"É. Umas sete horas."

"Tudo isso?! Meu Deus. E o que a gente fez aqui esse tempo todo?"

"Nada."

"Nada?"

"É, nada."

"Caramba. Tanto tempo perdido pra nada. Tem certeza que a gente não fez nadinha mesmo?"

"Um-hum."

"Puxa vida."

"É."

"Teve aquela hora em que a gente assistiu à tv. Lembra?"

"Lembro. Mas foi pouco tempo."

"Quanto?"

"Uns quarenta minutos, mais ou menos."

"E depois a gente fez o quê mesmo?"

"A gente ligou pro cara do aquecedor, ele não atendeu. Depois a gente jantou, aí sua mãe ligou e você falou com ela durante cinco minutos, e enquanto isso eu lixei minhas unhas."

"E depois?"

"Depois a gente ficou lendo o jornal, procurando alguma coisa pra fazer. E só."

"Então... quer dizer que a gente passou esse tempo todo procurando o que fazer, foi isso?"

"É, acho que sim."

"Nossa. Que desperdício."

"Também acho."

"Da próxima vez a gente não vai perder tanto tempo. Se não surgir nada pra fazer, a gente inventa, nem que seja um baralho ou uma sinuca, ou um livro, sei lá."

"Não vai ter próxima vez, pelo menos não esta semana."

"Ué, por quê não?"

"Porque amanhã você trabalha, e depois de amanhã também, esqueceu?"

"Ih, é mesmo. Não é que eu tinha esquecido?"

"É, deu pra perceber."

"Poxa, que pena. Bom, pelo menos a gente se encontrou e colocou a conversa em dia."

"A gente quase não conversou."

"Sério?"

"Sério."

"Meu Deus. Quanto tempo perdido."

"É."

"Bom, mas pelo menos semana que vem a gente vai se ver de novo."

"Se eu estiver por aqui."

"Você não vai estar?"

"É provável que não. Eu viajo no sábado e não sei quando volto."

"..."

"..."

"Bom, então eu já vou. Me liga quando você voltar. Boa viagem."

"Obrigada. Até."

"Até."

terça-feira, abril 10, 2007

Cromossomo X por Srta. Jones

Elas caminham como se não se importassem se estão sendo olhadas ou não, mas na verdade elas se importam. Elas são mulheres que fazem gênero.

Elas usam minissaias e seguram os cigarros na ponta dos dedos. Elas são mulheres que fazem gênero.

Quando estão numa boate, dançam de olhos fechados e lentamente, como se todos as atenções devessem se voltar somente para elas. Elas são mulheres que fazem gênero.

Quando querem seduzir um homem, caminham dançando em sua direção como se fossem a mulher mais incrivelmente sexy do mundo. Elas são mulheres que fazem gênero.

Quando saem em grupo com as amigas, exageram nas insinuações de homoerotismo. Elas são mulheres que fazem gênero.

Elas se esforçam para parecem sempre blasés, mas nunca querem deixar de ser notadas. Elas são mulheres que fazem gênero.

Elas se auto-definem como "muito complexas" e dizem odiar todos os rótulos. Elas são mulheres que fazem gênero.

Elas alimentam o sonho de um dia serem exatamente como Scarlett Johansson, trejeitos, caras e bocas. Elas são mulheres que fazem gênero.

Quando saem à noite, é a elas que todos os homens perdidos se dirigem. Elas são mulheres que fazem gênero.

segunda-feira, abril 02, 2007

Um dia, alegria por Srta. Jones

Ele sempre tinha uma história para contar. Não era fácil ser ele. O tempo todo, todos os dias e anos, pensando e criando e enlouquecendo as pessoas com suas idéias. Ele não era um santo.

Suas crias nos fizeram pensar. Mais do que isso, nos fizeram sentir. Não tinha como alguém não se empolgar diante de tanto entusiasmo, loucura e arte. Só ele conseguia disso. E ele nunca nos decepcionou.

Seus momentos foram aparecendo e se tornando cada vez mais freqüentes e duradouros. Ele era dono de sua obra e ninguém poderia fazer como ele. Era inimitável e merecedor de cada segundo de adoração que atraía. Podia-se dizer mesmo que era um gênio. Mas os gênios sempre vivem por muito tempo.

Com ou sem uma musa, sua arte seria igualmente bela, simples, elétrica e subestimada. E ele sempre fez mais. Hoje mais do que ontem, e assim foi até o dia em que ele não pôde mais. Justamente no momento em que todos se perguntavam: "e agora, do que mais ele é capaz?"

Sempre tão compenetrado, sempre sendo a alma da sua criação. Sempre sorrindo, ou mascando um chiclete. Às vezes de óculos escuros, e algumas mechas caindo sobre os olhos. Sempre um artista, no sentido mais puro e idealista e menos vulgar do termo. Um dia ele teve de ir. Eu só soube três dias antes. Mal tive tempo de me despedir.

Espero um dia vê-lo de novo. Até lá, dançarei todas por você, meu querido.

terça-feira, março 13, 2007

Paranóia, Paranóia por Srta. Jones

"Doutor, nada disso é real, está tudo na minha imaginação!"

"Mas é claro que não. São problemas reais, com causas reais. É tudo muito simples e claro."

"Não! Está tudo aqui dentro, aqui! Tudo isso só existe na minha cabeça."

"Você está muito estressado, por isso pensa que nada é real. Mas tudo isso existe sim, eu posso ver."

"Não, essas coisas não existem. Eu... eu inventei tudo. É, eu inventei."

"É normal você pensar isso. Você está sob grande pressão, por isso pode ter a impressão de estar tendo ilusões e de que tudo à sua volta é fruto da imaginação. Mas não é o caso."

"Doutor, o que eu tenho que fazer para o senhor acreditar em mim?"

O médico o fita em silêncio. O paciente parecia derrotado.

"Eu não sei mais o que dizer. Eu vou ficar mais..." - o paciente consultou o relógio de pulso - "47 minutos aqui falando a mesma coisa?"

O médico continuou em silêncio.

"Eu vou embora então. Não posso ficar quase uma hora olhando pro senhor em silêncio."

"Fique aí. Relaxe e deixe que as palavras saiam naturalmente, que os pensamentos fluam e se encadeiem de forma orgânica."

"Ahn?"

"Respire fundo, solte bem os braços e as pernas. Relaxe a cabeça, o pescoço, as pálpebras. Repouse as mãos sobre o encosto da poltrona."

"Doutor, o senhor está tentando me hipnotizar?"

"Eu só quero que você relaxe. Relaxe."

"Eh... Tá certo. Eu vou relaxar. Daqui a pouco eu tiro uma soneca também."

"Você não deve adormecer, deve somente r-"

"Relaxar, eu sei."

"Então, pode começar."

O paciente se esparrama na poltrona. O médico o observa com ar de reprovação, mas continua seu trabalho.

"Agora, imagine que você está num belo jardim, cercado de flores de cores e texturas variadas, de diferentes perfumes. Cada flor representa uma característica sua. Agora, pense em como você pode desenvolver cada vez mais essas características."

"A preguiça eu já estou desenvolvendo agora, só de ficar sentado aqui."

"Silêncio!"

"Ok."

"Agora, pense num campo muito verde, muito grande. Olhe para o céu. O que você vê?"

"..."

"O que você vê?"

"Mas eu não tinha que ficar em silêncio?"

"Naquela hora sim. Agora você pode falar. O que você vê?"

"No céu?"

"É, no céu."

"Humm... eu vejo... duas cabras, uma vaca, uma máquina de escrever, duas cadeiras, um terço, um violão, e um homem voando."

O médico olha o paciente com espanto.

"Continue."

"E o céu não está azul. Ele é roxo, com bolinhas amarelas. E as nuvens são verdes."

"Sim."

"E eu inventei tudo."

O médico, irritado, dá um soco no encosto de sua poltrona.

"Você não inventou nada! É tudo verdade!"

"Não, não é! E quer saber, tudo isso aqui é inventado! Esta sala, estas poltronas, os seus livros, aquelas fotografias da sua família. E as minhas neuroses, as paranóias, as manias. Tudo!"

O médico se levanta da poltrona num rompante.

"Você não inventou nada! Nada, ouviu? E pare com essas besteiras. Quem diz se são neuroses ou não sou eu! Eu sou o médico!"

"Eu inventei tudinho. Eu inventei o senhor. Sim, é isso! Você não existe! Eu inventei você!"

O médico não conseguia mais ouvir. Ele se dirigiu à porta.

"Saia, saia! Ande logo!"

"Você não existe. Você está na minha imaginação. Se eu deixar de pensar em você, você deixa de existir por completo."

"Saia! Saia agora!"

O paciente já ia saindo pela porta.

"Pense nisso. Se eu morrer agora, você deixa de existir."

O paciente saiu e o médico fechou a porta em seu encalço. Foi até o banheiro e lavou o rosto. Ao endireitar a coluna, ficou cara a cara com o espelho. Seu reflexo não estava mais ali. Olhou para sua sala e tudo havia sumido. Ele não existia mais.

domingo, março 11, 2007

Dúvida por Srta. Jones

"Mas doutor, o senhor acha que o meu problema tem solução?"

Já era a terceira vez que ele ia ao médico com a mesma queixa. O clínico já não sabia mais o que responder.

"Eu nem posso dizer que há um problema. Você já fez todos os exames. Não é um tumor, nem é um desvio na sua coluna. Você já disse que não sofre de sinusite nem labirintite. Eu não sei o que pode ser."

"Tem que ser alguma coisa. Será que é algo que eu comi?"

"Uma dor de cabeça não duraria dois meses por causa de algo que você comeu."

"Tudo bem, esta possibilidade está descartada. E se eu bati com a cabeça em algum lugar e não me lembro?"

"De novo, a dor não duraria dois meses se esse fosse o caso. Eu lamento, mas sua dor não tem nenhuma causa física provável."

"Não é possível. Essa dor tem que ter um motivo. Tem que ter."

"Você está passando por alguma situação estressante repetitiva? Alguma coisa no seu trabalho, talvez?"

"No trabalho... acho que não. Mas eu tenho que escutar a vizinha cantando a música da novela a plenos pulmões todos os dias. Isso é bem estressante."

"Algo mais estressante do que isso."

"Bom. Ir todo dia para o trabalho me estressa. Eu não gosto do contato com outras pessoas. E ler os jornais também me irrita profundamente. As notícias são sempre iguais."

"Alguma ameaça à sua estabilidade profissional, algum problema familiar?"

"A minha mãe me liga todos os dias para dizer que eu estou ficando velho e preciso casar. A impressora do escritório sempre engole os meus relatórios. Uma das secretárias passa o dia todo lixando as unhas e falando sobre o namorado, e qualquer dia desses eu vou colar os dedos dela com superbonder."

"Sim, mas... há alguma coisa realmente grave acontecendo?"

"Grave? Bem... eu não sei. Grave. Grave, como algo muito sério, muito urgente?"

"Sim."

"Bem... eu preciso entregar o relatório anual de planejamento até a semana que vem, e não estou nem na metade ainda. Isso é bem grave."

"É, pode ser isso. É uma situação de pressão, de estresse. Isso pode provocar efeitos físicos severos, como uma dor de cabeça persistente, por exemplo."

"É, quem sabe não é isso mesmo. Eu pensei até que pudesse ser outra coisa, mas acho que deve ser esse problema do relatório."

"O que você pensou que pudesse ser?"

"É que..."

"Fale."

"É um pouco difícil falar sobre isso. É complicado explicar, sabe?"

"Mas tente."

"Bom... é que, há coisa de uns dois, três meses, eu venho tendo aulas de canto."

"Aulas de canto? Mas isso é muito bom!"

"É, é mesmo. Eu sempre quis fazer aulas mas não tinha tempo e às vezes era só vergonha mesmo. Pois então, há três meses eu faço aulas de canto duas vezes por semana, sempre depois do trabalho. Eu saio de lá restaurado, feliz, realizado. É como um sonho se tornando realidade."

"Sim, mas o que há de estressante nisso?"

"Pois então, doutor. A minha professora de canto me disse que eu sou muito bom, que eu sou um talento nato que precisava ser descoberto..."

".. Isso é maravilhoso!"

"É, é sim. Mas ela quer que eu cante. Em público."

"Mas isso é um grande voto de confiança que ela está depositando em você. E você quer cantar em público?"

"Esse é o problema. Eu não quero. Na verdade, eu não posso."

"Mas por que não?"

"Porque... porque eu vou ter que me expor. Eu não quero me expor."

"Mas se você tem talento, deveria controlar o medo. Não são todas as pessoas que são abençoadas com o dom de cantar. Isso é muito especial."

"É, é especial sim. Mas também é embaraçoso. Eu não quero que todo mundo fique sabendo que eu canto bem."

"Mas isso é espantoso. Normalmente uma pessoa mataria por uma oportunidade dessas, e você a está recusando?"

"Veja bem, eu não estou esnobando o destino. Eu realmente agradeço à minha professora de canto pela chance, mas é um passo muito grande para mim, e eu não quero dá-lo."

"Eu realmente não consigo entender."

"Eu não nasci para isso. Eu gosto de ser assim. Ninguém me vê, eu não vejo ninguém. A vida passa, o mundo caminha e eu vivo minha vida sem ser importunado. É bom assim."

"É confortável."

"É, exatamente! É extremamente confortável."

"O conforto pode levar à mediocridade."

"Mas eu não sou medíocre."

"Você tem um talento e prefere manter-se fechado na sua concha, confinado no seu próprio mundo. Essa atitude é a mãe de todas as mediocridades."

"Ah doutor. Não diga uma coisa dessas. Eu estou tão bem vivendo assim."

"Está bem mas poderia ficar melhor. E certamente sua dor de cabeça passaria."

"Será? Eu faria qualquer coisa para me livrar da dor de cabeça."

"Tenho certeza de que, se você aceitar o convite de sua professora, a dor passará."

"Humm... eu não sei. Eu preciso pensar um pouco mais."

"Cuidado para não acabar pensando demais e perdendo a oportunidade. O mundo não espera por ninguém."

"Mas o que eu faço com a minha... com esse meu bloqueio? O que eu faço com isso?"

"Você pode fazer terapia."

"Mas eu precisaria falar sobre a minha vida. Eu não falo sobre a minha vida com ninguém."

"Então eu não sei como posso te ajudar."

"Mas eu preciso cantar! Eu não agüento mais essa dor de cabeça!"

"A terapia pode te ajudar, mas você precisa fazer um esforço. E mesmo assim não há cem por cento de certeza de que você vá se curar. Você pode aprender a administrar o problema, talvez."

"Mas eu preciso me curar."

"Eu não sei se isso é possível."

"Mas doutor, então o senhor acha que o meu problema não tem solução?"

"A solução é aprender a contornar o problema, e não necessariamente resolvê-lo."

"Sei. Quer dizer, eu acho que não entendi bem, mas..."

"É como uma pedra muito grande que está no meio do caminho. Ela é pesada demais para que você a tire do lugar. Então, a coisa inteligente e prudente a se fazer é desviar dela. Assim, você continua sua caminhada sem precisar fazer um esforço que, no fim, não levaria à nada."

"Ah, sei. Então eu preciso aprender a me desviar do meu bloqueio, é isso?"

"Sim, exatemente."

"E como eu aprendo isso?"

"Aprendendo a viver."

"Ah... e como eu aprendo a viver?"

"Cantar seria um bom começo."

"É, parece uma idéia razoável. Bom doutor, obrigado pelo conselho. Eu... eu só não sei se vou realmente conseguir seguí-lo."

"É, mas pelo menos eu fiz a minha parte. É pra isso que eu existo."

"É, é verdade. Bom, até a próxima!"

"Até, e não esqueça de me mandar um convite para assistir à sua estréia."

"O senhor vai querer me assistir?"

"Sim, por que não?"

"Doutor, acho que a minha dor de cabeça está piorando..."

sábado, março 10, 2007

Nervos por Srta. Jones

"Eu não agüento mais as mulheres!"

Ela entornou mais um gole da vodka.

"Se elas não estão te perguntando se estão bonitas ou não, elas estão falando pela milionésima vez sobre algum cara que tá andando pra elas. E se elas não estão fazendo nem uma coisa nem outra, elas estão como eu, bebendo e alugando o ouvido de vocês."

Seus dois amigos a observavam achando graça e ao mesmo tempo espantados com uma cena até então inédita. Ela nunca bebia e certamente nunca havia ficado bêbada na frente deles.

"E pra piorar, eu tô aqui curtindo um projeto de dor de cotovelo e nem posso fazer como elas e encher o saco de alguém com isso, porque eu não sou assim. Eu não vou alugar ninguém por causa de problemas com homens. Eu detesto isso!"

"Mas você pode falar com a gente. Vai, fala."

"Falar o quê? Que eu tenho sido sistematicamente rejeitada no jogo amoroso? Que eu só levo nota zero? Que em todos os lugares que eu vou os homens só me olham e não tomam nenhuma atitude? Que os homens que me interessam são uns frouxos? É isso que vocês querem ouvir?"

"Ué, mas se são esses os seus problemas, então é isso que a gente quer ouvir mesmo."

"Eu cansei, sabe. Eu cansei. Outro dia um sujeito me olhou numa festa e eu fiquei procurando ele por umas duas horas. Quando ele já tava indo embora, eis que o panaca veio até mim e disse que eu era linda. Era de se esperar que no mínimo ele me desse um beijo, mas o que ele fez? Nada. Zero. Ele foi embora e eu fiquei lá, com cara de palhaça, olhando ele ir."

"E por que você não fez nada?"

"Porque eu sou uma idiota! Você já não sabia disso, caramba? Existe uma coisa chamada senso de oportunidade e ela não está no meu vocabulário comportamental. Sacou?"

"Um-hum."

"Eu sou uma estúpida, uma tapada. E só os homens que não me interessam olham pra mim. Tirando esse mané que disse que eu era linda. Ele era um gato."

"Mas será que você não é exigente demais?"

"O quê? Como é? Exigente demais?! Cê tá de sacanagem! Você quer que eu fique com qualquer um, só pra não voltar pra casa de mãos abanando? Eu não sou homem! Vocês é que fazem isso."

"Nem todos."

"Ah, nem todos o cacete! Vocês são todos iguais. São todos malucos, burros, confusos, indecisos ou covardes."

Os amigos sorriam e não retorquiram às acusações. Ela tomava mais um gole da vodka quando seus olhos bateram em alguém. Ela paralisou por um momento. Engoliu o resto da vodka, aprumou-se na cadeira e ajeitou os cabelos. Os amigos viraram na direção em que ela estava olhando.

"Quem tá aí?"

"Ele. Ele, o tal."

"O que te chamou de linda?"

"Não. O diabo com cara de anjo."

Seus amigos não entendiam. Ela levantou da cadeira e foi em direção a um grupo de rapazes. Ela se aproximou de um deles e o cutucou no ombro.

"Olá, moço!"

"O-oi."

Ele sorria constrangido. Ela flutuava em toda a coragem que a bebida lhe dava.

"Quem diria. Com tantos outros lugares mais prováveis e a gente se encontra logo aqui. Eu tô ali naquela mesa bebendo com os meus amigos. Quer dizer, só eu estou bebendo, eles estão só me acompanhando. Sabe como é, conversa de bêbado às vezes pode ser interessante. Mas é curioso encontrar você aqui, não? Porque era justamente sobre você que eu estava falando. Quer dizer, não exatamente você, mas homens, de uma maneira geral. Como vocês confundem a cabeça até da mais centrada das mulheres. A minha, por exemplo. Olha, está por aqui de confusão. Eu tive até que beber pra ver se colocava algumas das idéias no lugar certo, porque eu estava com uma certa dificuldade pra pensar. Coisas demais na minha cabeça, sabe como é? Pensar demais é ruim pra cabeça de qualquer um. Mas como eu ia dizendo, eu tava falando de você. Tava falando com eles sobre a maluquice que é tentar entender o que vocês pensam, o que vocês querem. Quando eu te vi, eu disse pra eles que você era o diabo com cara de anjo. Essa sua carinha de bobo é a perdição de várias garotas. Eu aposto que você já partiu o coração de um monte de meninas com o seu ar inocente. Mas elas eram meninas. Eu sou uma mulher. Falta muito pra você partir o meu coração. Essa carinha de anjo não basta."

Ele não reagiu. Ela continuava seu sermão.

"Outro dia mesmo um cara me disse que eu era linda. Olha só isso, linda, eu. Linda, inteligente, articulada, o escambau. De que isso me adianta? De quê? Se ninguém souber dar valor a isso tudo, então não serve de nada. Se só os caras errados repararem essas coisas, então eu estou frita. É melhor ir pra um convento."

"Mas, sabe de uma coisa? Que se dane. É, que se dane. Eu disse pros meus amigos que eu não tenho senso de oportunidade. Pois bem, eu acabei de tomar uma atitude. E sabe do que mais? Eu não tô nem aí se vai dar certo ou não. Eu não quero saber. Eu tô jogando xadrez com a vida. Eu fiz o meu movimento e agora é a vez de vocês, homens, jogarem. E se não jogarem, o problema é de vocês. Eu desisto. Vou jogar uma mochila nas costas e procurar o Satori. Vou virar monja budista!"

Um de seus amigos, ouvindo seu agora escândalo, se aproximou.

"Vamos voltar pra mesa, vamos."

"Vamos sim, eu só tava terminando de explicar pro moço aqui que eu desisti de entender o gênero de vocês. Por mim os homens podem ir todos pra Marte e fundarem uma grande colônia gay por lá. Quem sabe assim vocês não serão felizes, hein?"

"Vamos, vamos."

Seu amigo a pegou por um dos braços e a levou de volta pra mesa.

"Você tem certeza de que conhecia o sujeito? Será que você não tava falando com o cara errado?"

Ela virou para trás e viu o diabo com cara de anjo ir embora, como se nada tivesse acontecido.

"Vocês são todos iguais. Todos."

quinta-feira, março 01, 2007

Consulta por Srta. Jones

"E onde dói mais?"

"Aqui, nas têmporas. Parece que estão esmagando a minha cabeça pelos lados."

"Há quanto tempo você sente essa dor?"

"Humm, algumas semanas, uns dois meses, talvez."

"E você lembra quando começou?"

"Não, mas eu lembro que estava tomando um chocolate quente na hora."

"Chocolate quente?"

"É. Não estava muito bom. Muito aguado."

"Sei. Bom, eu vou te passar um remédio para a dor e vou pedir que você faça uns exames, nada muito complicado."

"Pra saber se é um tumor?"

"... n-não, não é para isso. Até porque não deve ser nada demais."

"Um-hum. Não é um tumor então?"

"Pelos sintomas que você descreveu, provavelmente não."

"Ok. Bom saber."

"Mas mesmo assim é necessário fazer os exames, pra eliminar possibilidades."

"Eliminar possibilidades. Mas se provavelmente não é um tumor, então esta possibilidade está descartada, não está?"

"Probabilidade é diferente de possibilidade."

"Então, o senhor está me dizendo que não é provável, mas que é possível?"

"S-sim, é mais ou menos isso. Mas como não é provável, dificilmente será possível."

"Sei. Então o senhor elimina a probabilidade mas mantém a possibilidade?"

"Sim, sim. Exatamente."

"Sei. Sei."

"Entenda, nem tudo que é improvável é impossível, assim como nem tudo que é possível é provável, e tudo que é impossível é improvável."

"Uh-huh. Entendi. Eu acho."

"Mas nesse caso específico, sim, eu estou eliminando a probabilidade mas mantendo a possibilidade, já que tudo é possível."

"Nem tudo."

"Mas é claro que sim."

"Não é possível que chovam canivetes."

"Claro que é. Se uma pessoa subir até o andar mais alto de um prédio e jogar vários canivetes em direção à rua, então estarão chovendo canivetes."

"Então quer dizer que tudo é possível?"

"Exatamente. Nem tudo é provável, mas tudo é possível."

"Ok, ok. Bom, o senhor já fez a receita?"

"Ah, sim. Está aqui. E a guia para os exames."

"Bom, então, até a próxima consulta."

"Até a próxima consulta."

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

O Salto por Srta. Jones

"Pula."

"..."

"Pula, vai."

"M-mas..."

"Mas nada, pula!"

"M-mas e se der errado?"

"Como, dar errado? Por que você veio até aqui então?"

"Eu achei que devia."

"Você não tem que achar, você tem que ter certeza. O que você vai perder se pular? Você já está aqui!"

"Mas agora eu não sei mais..."

"Você pensou durante quanto tempo? Quanto tempo até se decidir? Aposto que deve estar há um ano pesando os prós e contras. Não pode ser assim, tem que decidir, já."

"Um ano não. Menos."

"Há, 'um ano não, menos'. Grandes coisas, que diferença faz? O problema é que você pensa demais."

"Mas eu tenho medo."

"Medo? Se você realmente tivesse medo, não teria vindo até aqui. Aqui é lugar de corajosos. Quem pula daqui de cima, ao contrário do que dizem lá embaixo, não é louco."

"Eu sei. Eu.. acho que sei. Mas e se não for como eu quero que seja? E-eu queria fazer isso para ser livre."

"Mas você já é livre! É isso que você não consegue entender. Você é livre porque teve coragem suficiente pra subir."

"Eu não quero pular."

"Há, você é impossível. Agora eu entendo porque todos desistem. Você espera demais!"

"Do que você está falando? Quem desiste?"

"Todo mundo. Todo mundo desiste de você, e quem ainda não desistiu, vai fazê-lo um dia, pode ter certeza."

"Eu não acho que as pessoas desistam de mim. Você acha?"

"Eu sei que elas desistem! Eu quero desistir. Você espera demais."

"Mas eu preciso pensar."

"Não! Não, não, não! Você já pensou. Você já decidiu. Não tem como voltar atrás."

"Mas é claro que tem."

"Só se você quiser ser um covarde."

"..."

"..."

"Eu vou pular."

"Isso! Vai! Pula!"

"A corda tá firme?"

"Sempre!"

"É agora."

"Vai com Deus."

domingo, fevereiro 18, 2007

Enredo por Srta. Jones

Ela voltou ao hotel, já bem tarde. Não sentia fome, mas queria ir ao restaurante porque acreditava na chance de encontrá-lo novamente. O dia todo foi gasto pensando nisso. Não se concentrou em livros, nem nos passeios pela cidade. As horas giravam todas em torno de um encontro que não estava marcado, e que podia não acontecer. Mas era a sua vontade.

Ela tomou um banho rápido e se arrumou. Ainda esperou por um tempo porque queria deixar a fome chegar. "Preciso de mais motivos para ir jantar agora", pensou. Mas a fome não chegava e ela decidiu partir assim mesmo.

Havia mais clientes no restaurante do que o habitual. Três ou quatro mesas estavam ocupadas, e novamente ela escolheu a que estivesse mais próxima da tv. O mesmo garçom a atendeu e já sabia o que ela iria pedir, e que ela preferia que a salada viesse junto com o prato principal. Enquanto esperava, não tirou os olhos da porta. Os minutos iam passando, o telejornal acabou, começou a novela, e nada. Talvez ele não viesse hoje. Ela só podia desejar.

O jantar chegou e ela continuava sem apetite, mas precisava comer. Àquela altura a comida lhe parecia repugnante, tamanha era a sua vontade de esquecer o jantar e se preocupar apenas com o que lhe interessava. Aquele rosto que estava gravado a ferro em seu pensamento, os gestos quase vagarosos e a atenção sublime ao simples ato de mastigar. Aquilo era mais importante que todo o resto, inclusive a comida.

O seu desânimo crescia à medida que os outros clientes iam se agitando com o desenrolar da novela. Ela não se importava com nada, estava vivendo seu próprio folhetim onde pareciam não faltar todos os elementos dramáticos da espera e da paixão. "Mas, paixão? Já?" Ela mesma se espantou com uma pretensa verdade mal disfarçada na sua falta de apetite. Encanto, enlevo, arroubo, talvez até mesmo paixão. Nomes diferentes para um só problema. Ela não queria mais comer. Mas a esse ponto ela conseguia, a duras penas, controlar certos caprichos e ceder a necessidades. "Afinal, eu vim aqui para isso."

E então ela comeu. Devagar, como sempre, talvez mais devagar que o habitual. Desistiu de olhar para a porta a cada 30 segundos e se concentrou no que estava fazendo. A novela acabou e os clientes começaram a sair, até que sobraram apenas ela e os garçons. Naquele momento ela havia recuperado o controle do que acontecia, ela novamente decidia os rumos de sua trama romanesca. E mesmo que ele não viesse, ainda assim ela terminaria seu jantar e não esperaria mais. Voltaria para o hotel e teria outra noite tranqüila de sono, adormecendo com fones ainda presos ao ouvido.

"Mas e se ele vier?"

O apetite cedeu mais uma vez. Uma garfada ficou suspensa no ar. Ela levantou os olhos em direção à porta e o viu. Estava com o mesmo casaco da noite anterior. Como antes ele houvesse entrado no restaurante totalmente desapercebido do ambiente, desta vez ele notou sua presença. Naquele momento ela só atentou para sua chegada, mas minutos depois, relembrando o instante decisivo, entendeu o que seu olhar estava realmente dizendo. Era como se ele houvesse visto algo que não esperava, que não estivesse preparado para ver. Como se quisesse dizer algo, mas as palavras faltavam. E assim ele a olhou outras vezes naquela noite. E numa conversa muda, eles pareciam, aos poucos, se entender.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Achado por Srta. Jones

Era a terceira noite em São Paulo. Os dois primeiros dias foram difíceis. Ela sentiu solidão e arrependimento e só o frio aplacava os pensamentos ruins. Sentia um nó cego descendo e subindo pela garganta e às vezes chegando no coração. Mas no fim da segunda noite algo aconteceu e ela esqueceu de tudo.

Havia um restaurante a duas quadras do hotel e ela jantava lá desde que chegara. Só havia dois garçons e era sempre o mesmo que a atendia. Ela escolhia a mesa mais próxima da televisão e esperava a refeição chegar, assistindo a alguma novela ou telejornal. No primeiro dia não havia clientes, mas naquela noite apareceu alguém. Ele estava sozinho e parecia não ser da cidade. Não devia ter percebido nada, pois sentou a três mesas de distância, mas ela acompanhou cada movimento seu da porta até a cadeira. Mesmo que ela não quisesse, não poderia deixar de olhar e não sabia dizer porquê. O jantar chegou.

Enquanto mastigava e ouvia uma notícia na tv ela observava. Ele tinha gestos contidos e não tirava os olhos da mesa. Fosse ela mais ousada iria até ele e se convidaria para sentar, mas ela não tomava certas atitudes. Preferia vê-lo de longe, como sempre fazia. Era como estar num museu e, no meio de objetos sem sentido ou valor, encontrar um quadro de Dalí. Ela contemplaria até seus olhos fecharem de cansaço e suas pernas adormecerem com cãibras. Talvez ela consideraria por alguns segundos falar com ele na saída, e consideraria outras coisas mas, como de hábito, ela não faria nada.

Ele terminou de comer, pagou a conta e saiu. Ela ficou paralisada por uns instantes porque lá dentro do seu cérebro ela ouvia risadas e galhofas contra sua atitude sempre infantil e sempre passiva de achar que certas coisas e pessoas são feitas apenas para serem vistas e nunca tocadas. Ela se comportava como se estivesse sempre naquele museu de bugigangas e um Dalí. Um elefante numa loja de porcelanas, o velho clichê. De novo, as risadas venceram, e ela continuou sentada, vendo televisão.

Quando chegou no quarto do hotel, jogou-se na cama e pensou no que tinha feito. E enquanto decidia se era ou não uma idiota, percebeu que o rosto dele não saía de sua mente, e nem a curiosidade sobre de onde ele tinha vindo. E que, talvez, se ela quisesse muito, ele estaria lá amanhã novamente. E esse pensamento puxou outros e ela dormiu, sem saber se afinal era mesmo uma idiota. Até porque isso não importava.

E no dia seguinte tudo em que ela conseguia pensar era ele. E se iria encontrá-lo de novo, se ele estaria lá. Se ele se sentaria na mesma mesa, ou se, percebendo sua presença, escolheria um lugar mais perto. Ela tomou o café da manhã e leu os jornais e caminhou pela cidade sempre com os mesmos pensamentos. E assim mais uma noite chegou e ela, presa nas divagações, ainda não sabia, mas estava completamente perdida.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Princípio por Srta. Jones

"Essa é a última leva."

Ele entrava no quarto pela quinta vez. Já havia levado um armário, uma guitarra, algumas peças de roupas, dvds e livros que estavam emprestados há meses e agora pegava seus pôsteres. Era tudo.

"Então, eu soube que você vai viajar."

"Um-hum. Vou."

"Pra São Paulo, né?"

"É, pra São Paulo."

"Quando você voltar, a gente pode almoçar juntos, conversar."

"É, pode ser. Quando eu voltar."

"Bom, eu já vou. Eu ainda tenho que ir trabalhar hoje."

"Ok. A gente se fala."

"A gente se fala. Tchau."

"Tchau."

Ela fechou a porta e voltou para o sofá. Estava lendo o jornal quando ele chegou para levar tudo o que dele tinha ficado por lá. Eram tantas coisas, que ficaram tanto tempo em sua casa, e pareciam que de lá nunca sairiam. Mas elas saíram.

Ela não estava triste. Estava aliviada, na verdade. Era como se o ato de levar embora tudo o que ele havia deixado colocasse o ponto final que faltava. Até então, a frase parecia não estar terminada. Agora estava.

Ela não tinha muito a fazer naquele dia. Terminou de ler o jornal, tomou seu café, ligou a televisão, e assim ficou até a hora do almoço. Depois disso deve ter dormido ou lido algum livro, ela não se lembra. Quando a noite chegou, ela teve medo. Achou que o vazio que a vinha acompanhando há mais de um mês lhe estragaria o resto das horas. Ela não queria se isolar num misto de auto-piedade e desespero, então resolveu tomar um banho. Fazia frio e o calor da água embaçou o espelho. Quando ela voltou ao seu quarto, viu que alguém havia ligado para o seu celular. Era um amigo que devia estar bêbado em algum bar, esperando que ela fosse até ele prestar solidariedade. Ela não bebia, e não gostava de estar perto de gente bêbada. Mas ela não queria ficar ali.

"Vou sair."

Ela se vestiu rapidamente e verificou como estava o tempo. O frio havia aumentado. Ela foi até a cozinha e encheu um copo de plástico comum com café. Voltou ao quarto, vestiu seu casaco, jogou a echarpe rosa sobre os ombros e saiu. Ela estava livre.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Pó por Srta. Jones

"E daqui a trinta anos, como vai ser?"

"Nós estaremos juntos."

"Eu sei. Mas e os nossos filhos? Nós vamos ter filhos?"

"Talvez. Quantos você quer?"

"Quantos couberem num abraço."

"Dois, então."

"Dois, então."

"Por que você sempre acorda linda?"

"Como eu posso saber? E se você acha que eu fico linda de olhos inchados e cara amassada, você precisa ir ao oftalmologista."

"Você acorda linda. Sempre com um sorriso."

"E sempre do seu lado. Isso explica muito."

"E eu sempre acordo de mau humor. Mas aí eu viro na cama e vejo você. Não dura nem um segundo."

"Vai ser assim daqui a trinta anos?"

"Daqui a trinta anos, cem, cinco ou seis mil. Não importa quanto tempo."

"Imagina se um terremoto acontecesse agora, nesse instante, e toda cidade virasse pó. E daqui a muitos mil anos os arqueólogos viriam até esse lugar e encontrariam os nossos esqueletos."

"Abraçados, assim."

"Abraçados."

"A gente ainda tem trinta minutos. Vamos dormir mais?"

"Você dorme. Eu vou ficar acordada vendo você dormir."


E então a terra tremeu e tudo virou pó. Menos o amor.

terça-feira, janeiro 16, 2007

De partida por Srta. Jones

A dor começou na sexta de manhã. Era uma pressão no peito, bem no meio, parecia um elefante sentado sobre uma formiga. Se fosse um pouco mais à esquerda e para baixo, pensaria que era o coração. Mas era bem no meio.

Piorava quando eu saía. Quando eu falava com pessoas, quando eu me lembrava. Em casa, eu tinha que me preocupar com outra dor. Quando eu estava sozinha.

Hoje, só hoje, eu não senti dor quando estava com outras pessoas por perto. Nenhum dos convivas de hoje me lembrava do que eu não queria sentir. Ninguém ali, nenhum rosto, nenhuma memória. Só risos, risadas, sorrisos. Amigos novos, amigos velhos, conhecidos, desconhecidos. Ninguém lembrava. Nada.

Fiquei sozinha no ponto de ônibus e a dor voltou. Percebi que ela havia mudado de capricho. Agora doía mais quando ficava só. Doeu enquanto caminhava para casa. Segurei as chaves e lembrei. Quando cheguei, pensei de novo nos amigos. E aí parou de doer. Amigos maravilhosos eu tenho.

Eu vou partir sozinha. Não sei se vai doer. Só vou saber quando chegar. Até lá tenho mais amigos para encontrar. Mais dor para sentir? Só o tempo, só o tempo.

sábado, janeiro 06, 2007

De novo, só mais uma vez por Srta. Jones

"Eu sou jovem demais para viver assim."

E foi com esse pensamento que ela enrolou a echarpe rosa no pescoço e saiu rumo à calçada. Ela ainda não sabia exatamente para onde deveria ir, ou o que deveria fazer. Este era o frescor de uma nova atitude, uma excitação que ela sabia desconhecer. Um passo à frente, dois suspiros por causa do frio - seus braços envolviam a cintura e apertavam o casaco vermelho ainda mais rente ao corpo. "Queria sempre viver assim. Sem saber onde ir, ou por onde começar." Com apenas o calor do seu corpo e do café queimando a barreira de ar frio que se formou em torno da vida.

Na primeira esquina, um casal de idosos que esperavam uma filha entretida num baile comunal qualquer. Seus olhares nervosos equilibravam a solenidade calma com que se prostavam em frente à porta de entrada de uma velha barbearia. Ela meneou um "boa noite" e seguiu caminhando como se quisesse enganar a todos e fazê-los crer que sabia exatamente para onde estava indo.Ela caminhou por ainda mais algumas poucas dezenas de minutos e por muitas lojas fechadas, bares repletos de bêbados da meia-noite e estudantes arruaceiros aproveitando o indulto de fim de semana. Os carros passavam com suas buzinas zunindo e seus condutores rezando por um cruzamento livre. O ar ficava cada vez mais gelado mas ela obstinava em seguir, porque sabia com toda a certeza que aquele tinha sido o último dia em que viveria daquela velha maneira. Tudo era novo dali por diante, e tudo o que ela precisava fazer era seguir em frente.

Quando ela finalmente avistou a porta amarela a rua já estava tomada de tipos estranhos e diletantes em busca de reconhecimento rápido. Ela não tardou em procurar o lugar mais afastado o possível daqueles modistas de última hora, e encontrou seu casulo numa lanchonete que, apesar do avançado da hora, funcionava ali a pleno vapor, abrigando os degredados da noite e os solitários. Ela foi até o balcão e pediu uma xícara de café. A televisão ligada transmitia um daqueles filmes de fim de noite, e casais escondidos em mesas de canto confidenciavam prazeres culpados sobre copos e mais copos de gim. Ela não se prendeu em nenhum foco específico até seu café chegar e tomar toda sua atenção. O calor da xícara esquentou suas narinas e maçãs do rosto, e ela se sentiu confortável de novo. Uma onda de energia passou próxima de seu braço, e ela sentiu que alguém havia se sentado ao seu lado. Ela não tinha certeza se deveria virar e olhar quem era, e o café estava muito bom para ser negligenciado naquele exato momento. Ela calculou que seria melhor esperar alguns segundos, mas a pessoa que havia gerado aquela onda de energia decidiu não esperar por ela. Ele chamou seu nome. Ela não pôde fazer nada além de responder.

"Oi."

"Você aqui? Que surpresa. Eu pensei que esse tipo de lugar te causasse repulsa."

"Não hoje."

"Não hoje? E por que não?"

"Porque hoje eu decidi que vou viver. Mesmo que pra isso eu tenha que me misturar aos porcos."

"Eu sabia que você não tinha mudado em nada."

"Aí é que você se engana. Tá vendo esse café aqui? É a única coisa que eu vou guardar da minha antiga vida. Isso e as roupas."

"Mas você não acha que esse café vai acabar ficando velho? E frio?"

Ela sorriu para a piada sem graça dele.

"Não se esqueça dos cds, e dos dvds. E dos livros também. Você não consegue viver sem seus livros."

"Eu consigo viver sem qualquer coisa, porque eu posso viver com qualquer coisa."

"Muito filosófico. Não entendi nada."

"Não é pra entender. Você por acaso entende estado de espírito? Você não entende essas coisas, você sente. Aqui. Se você tentar entender vai acabar não sentindo nada."

"Sei. Mas por que mesmo você está aqui?"

"Porque eu resolvi tapar o meu nariz e dançar no chiqueiro."

"Se isso te satisfaz."

Ela deu de ombros e terminou de tomar o café. Pagou com os trocados que tinham ficado no bolso da calça e se levantou.

"Você vai ficar aí?"

"Vou. Tô esperando uns amigos meus."

"Eu não estou esperando ninguém. Eu vou entrar logo na lama porque só existe uma pérola e ela tem de ser pega por mim."

"Você e os porcos. Vai ser uma briga interessante."

"Desde que eu consiga vencer."

Ela acenou com a cabeça e saiu. A porta amarela estava escondida atrás de uma enorme fila. Ela foi direto até o segurança e mostrou sua carteira. Ele sorriu e levantou a corda para que ela entrasse. A caça ao tesouro havia começado.